quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

MORTE E VIDA SEVERINA

O meu nome é Severino,
como não tenho outro da pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria.
Como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos:é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da Serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos
já finados,Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.


Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

De JOÃO CABRAL DE MELO NETO

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

BOM NATAL


São os meus votos!

ECCE HOMO


Desbaratamos deuses,procurando

Um que nos satisfaça ou justifique.

Desbaratamos esperança,imaginando

Uma causa maior que nos explique.


Pensando nos secamos e perdemos

Esta força selvagem e secreta,

Esta semente agreste que trazemos

E gera heróis e homens e poetas.


Pois Deuses somos nós.Deuses do fogo

Malhando-nos a carne,até que em brasa

Nossos sexos furiosos se confundam,


Nossos corpos pensantes se entrelacem

E sangue,raiva,desespero ou asa,

Os filhos que tivermos forem nossos.


De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

ANTES QUE SEJA TARDE


Amigo

tu que choras uma angústia qualquer

e falas de coisas mansas como o luar

e paradas

como as águas de um lago adormecido,

acorda!

Deixa de vez

as margens do regato solitário

onde te miras

como se fosses a tua namorada.

Abandona o jardim sem flores

desse país inventado

onde tu és o único habitante.

Deixa os desejos sem rumo

de barcos ao deus-dará

e esse ar de renúncia

às coisas do mundo.

Acorda,amigo,

liberta-te dessa paz podre de milagre

que existe

apenas na tua imaginação.

Abre os olhos e olha

abre os braços e luta!

Amigo,

Antes da morte vir

nasce de vez para a vida.


De MANUEL DA FONSECA,in "Poemas Completos"

Ilustração tirada de essenciafeminina1.spaces.live.com

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

IMPROVISO


"Uma rosa depois da neve.

Não sei que fazer

de uma rosa no inverno.

Se não for para arder,

ser rosa no inverno de que serve?"

EUGÉNIO DE ANDRADE


A rosa é sempre a mensagem.

O fogo é sempre a viagem

Dos abraços abrasados na miragem

Do calor de ocultos véus


Poeta!Poeta em astros

De altos lumes

De altos mastros

Lembrança de lumes castos

E de perfumadas bodas

Em teatros de saudosos

Eternos bailes de roda...


Na sonhada perfeição

Dos leitos que a noite embala

Nos seus véus

De ocultos sagrados rios

Rios de amor ocultados

Na paixão dos bem - amados


Água,Luz. Murmúrio a dois,

No olhar adormecido.

Luz de um céu imaginado

No presente,no passado

Água,voz,canção de sóis.


Poema de NATÉRCIA FREIRE

Ilustração de baixaqui.ig.com.br


quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

PORT - WINE


O Douro é um rio de vinho

que tem a foz em Liverpool e em Londres

e em Nova Iorque e no Rio e em Buenos Aires:

quando chega ao mar vai nos navios,

cria seus lodos em garrafeiras velhas,

desemboca nos clubes e nos bares.


O Douro é um rio de barcos

onde remam os barqueiros suas desgraças,

primeiro se afundam em terra as suas vidas

que no rio se afundam as barcaças.


Nas sobremesas finas as garrafas

assemelham cristais cheios de rubis,

em Cape Town,em Sidney,em Paris,

tem um sabor generoso e fino

o sangue que dos cais exportam em barris.


As margens do Douro são penedos

fecundados de sangue e amarguras

onde cava o meu povo as vinhas

como quem abre as próprias sepulturas:

nos entrepostos do cais,em armazéns,

comerciantes trocam por esterlino

o vinho que é o sangue dos seus corpos,

moeda pobre que são os seus destinos.


Em Londres os lords e em Paris os snobs,

no cabo e no rio os fazendeiros ricos

acham no Porto sabor divino,

mas a nós só nos sabe,só nos sabe,

à tristeza infinita de um destino.


O rio Douro é um rio de sangue,

por onde o sangue do meu povo corre.

Meu povo,liberta-te, liberta-te!,

Liberta-te, meu povo! - ou morre.



De JOAQUIM NAMORADO,in A POESIA NECESSÁRIA

domingo, 9 de dezembro de 2007

LUME DE INVERNO


O lume. O lume rasteiro. O lume

ainda. Vem de tão longe. Da casa

térrea sobre a eira,

casa onde qualquer coisa pequena

pulsava: um coração,

a água no cântaro,

o trigo a crescer.

Era tão pequeno que nem sabia

como pedir uma laranja,

um pouco de pão.

Menos ainda,um beijo.

Parecia só saber

estender as mãos para aquele sol

rasteiro e para o olhar

que dos sortilégios do lume

o defendia.


De Eugénio de Andrade

Imagem "retirada" de blog.joaogrilo.com


quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

CHORO O AMOR


Choro o amor que não lhe dei
Mais a distância nunca vencida.
A vida toda que há numa vida,
Na hora inerte de ser-se rei.

Sabia histórias que não contava,
Contava coisas que mal sabia,
Límpida água,se evaporava.
Naquela aldeia se diluía.

Tenho na pele a sua pele.
Cal dos seus ossos,nestes meus ossos.
Desci com ela.Desci com eles.
Na transfusão dos seus destroços.

Com que palavras,com que poemas,
Hei-de indagar os seus segredos?

A infância em morte se descomanda.
O cemitério dobra a sinais.

Indiferentes fulgem regatos.
Ondeiam olhos no horizonte.

Fala-se a Língua que há nos retratos.
Diz-se que o Céu fica defronte.

É um manicómio de asas abertas
Que o nosso peso manda encerrar.

Pelas estradas hoje desertas
Cantou o mar.

Corre o silêncio por estes vales.
Um nevoeiro.Não chega a neve.

Nada responde.Ninguém me diz,
Se teve amores ou não os teve.

Se quis morrer ou ser feliz.

Ilustração tirada de XAFARICA
Poema de NATÉRCIA FREIRE

sábado, 1 de dezembro de 2007

TEMPO DE NÃO TEMPO DE SIM


"Chegou um tempo em que a vida é uma ordem"

CARLOS DRUMOND DE ANDRADE


Eis que de novo chega um tempo de batalhas.

Chega um tempo de povo. Tempo de viver

ou morrer. Chega um tempo de romper as malhas

que um tempo-aranha tece para nos prender

nas teias de cadeias malhas de muralhas.


Chega um tempo de massa.Tempo revolucionário.

Tempo de negação. Afirmação. Transformação.

Chega um tempo em que o poeta - mesmo o solitário -

já não está só: é só mais um na multidão.

Tempo de ver em cada coisa o seu contrário.


Chega um tempo febril. Fabril. Tempo de sín-

tese. Tempo de guerra. Tempo de mudança.

Chega um tempo de não. Chega um tempo de sim.

Tempo de desespero. Tempo de esperança.

Chega um tempo de início num tempo de fim.


Chega um tempo de agir no sentido do Tempo

tempo de se ganhar o tempo já perdido

tempo de se vencer o tempo - contratempo

para que o Tempo torne a ter sentido.

Chega um tempo de empunhar as armas do Tempo.


De MANUEL ALEGRE,in O CANTO E AS ARMAS