quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

OS MEDOS


(plagiado,em parte,de António Ferreira)


É a medo que escrevo.A medo penso,

A medo sofro e empreendo e calo.

A medo peso os termos quando falo,

A medo me renego,me convenço.


A medo amo.A medo me pertenço.

A medo repouso no intervalo

De outros medos.A medo é que resvalo

O corpo escrutador,inquieto,tenso.


A medo durmo.A medo acordo.A medo

Invento.A medo passo,a medo fico.

A medo meço o pobre,meço o rico.


A medo guardo confissão,segredo,

Dúvida,fé.A medo tudo.

Que já me querem cego,surdo,mudo.


De JOSÉ CUTILEIRO

in "Versos da Mão Esquerda"

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

KYRIE


Em nome dos que choram,

Dos que sofrem,

Dos que acendem na noite o facho da revolta

E que de noite morrem,

Com a esperança nos olhos e arames em volta.

Em nome dos que sonham com palavras

De amor e paz que nunca foram ditas,

Em nome dos que rezam em silêncio

E falam em silêncio

E estendem em silêncio as duas mãos aflitas,

Em nome dos que pedem em segredo

A esmola que os humilha e os destrói

E devoram as lágrimas e o medo

Quando a fome lhes dói.

Em nome dos que dormem ao relento

Numa cama de chuva com lençóis de vento

O sono da miséria,terrível e profundo,

Em nome dos teus filhos que esqueceste,

Filhos de Deus que nunca mais nasceste,

Volta outra vez ao mundo!


De José Carlos Ary dos Santos

sábado, 26 de janeiro de 2008

ÇÀ IRA!


Isto vai,caro amigo.

Não como nós queremos,é certo,

mas isto vai.


Por noites de insónia e alcatrão

por laranjas e lábios ressequidos

por desespero na voz e escuridão

isto vai,caro amigo.


Por mágoas acesas e relógios

pelo saber dos braços na alegria

pelo odor das plantas venenosas

isto vai,caro amigo.


Pelo cabo axial que liga a nossa esperança

pela luz dos cabelos,pelo sal

pela palavra remo,pela palavra ódio

isto vai,caro amigo.


Pela ternura e pela confiança

pela vontade e força,as nossas casas

pelo fervor com que inventamos (e depois

calamos)

isto vai,caro amigo.


Pelos carris do medo,pelas árvores

pela inocência e fome,pelos perigos

pelos sinais fraternos,pelas lágrimas

isto vai,caro amigo.


Pela rudeza do espaço

e em jardins falsíssimos


isto vai,caro amigo.


Desenho de Mestre Almada

Poema de JOÃO RUI DE SOUSA

in "Poesia Portuguesa do Pós-Guerra"

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

GUIA BREVE PARA UMA EXPOSIÇÃO DE JORGE MARTINS



Esta luz sobre os flancos

da pedra os seus cavalos

brancos

explosão solar dos cardos

ácida luz de areias

esta lâmina este grito

gume esperma

penetrando fendas frestas

esta luz amassada

na festa dos lábios

numa lágrima

nos espelhos

febre das lâmpadas

esta luz de rastos

lambendo a cal os pés

a cintura

esta luz à deriva

nos lençóis na espuma

exígua luz dolente

dividida

entre a música das mãos

e o silêncio do muro

esta luz tropeçando

desmaiando no escuro


(Julho,1976)

De EUGÉNIO DE ANDRADE

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

CANTIGAS


1/O VIANDANTE


Trago notícias da fome

que corre nos campos tristes:

soltou-se a fúria do vento

e tu,miséria,persistes.

Tristes notícias vos dou:

caíram espigas da haste,

foi-se o galope do vento

e tu,miséria,ficaste.

Foi-se a noite,foi-se o dia,

fugiu a cor às estrelas:

nesta negra solidão,

só tu,miséria,nos velas!



De CARLOS OLIVEIRA,in Mãe Pobres

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

SONETO DA DESPEDIDA


Uma lua no céu apareceu

Cheia e branca;foi quando,emocionada

A mulher a meu lado estremeceu

E se entregou sem que eu dissesse nada.


Larguei-as pela jovem madrugada

Ambas cheias e brancas e sem véu

Perdida uma,a outra abandonada

Uma nua na terra,outra no céu.


Mas não partira delas;a mais louca

Apaixonou-me o pensamento;dei-o

Feliz - eu de amor pouco e vida pouca


Mas que tinha deixado em meu enleio

Um sorriso de carne em sua boca

Uma gota de leite no seu seio.



De Vinicius de Moraes

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

CÂNTICO DO PAÍS EMERSO (excerto)



Desta vez havia turistas a bordo,turistas

Quase sempre cardíacos hepáticos às vezes;

Funcionários dos cruzeiros anuais que fazem

O périplo da África jogando bridge no salão;

Almas correctamente vestidas por alfaiates

Ingleses. Antípodas da virilidade

Demonstrada em actos de prestidigitação

(Meter no bolso um paquete de luxo e tirá-lo

Do peito transformado em Nação);


Desta vez havia os corvos civilizados

Do bloqueio. As gralhas metálicas dos linotipos

As câmaras dos deputados e as da televisão

A rádio,o cabo submarino, o veio

Do desencanto,do tédio,das tolices,

Duma humanidade que tem por condenação

Descrer da moderna possibilidades do Ulisses;

Os campos magnéticos para a propagação

Do folhetim lamechas do paquete. O paquete

Donzela pùblicamente desonrada. A empresa

Proprietária viúva do paquete

A subscrição para os órfãos do paquete

O paquete o paquete o paquete

O paquete a troco das verdades omissas

As novenas as missas por alma do paquete

A coroa funerária dos sonhos adiados

Dos sonhos feriados por causa dessas missas...



De NATÁLIA CORREIA

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

RETRATO DO HERÓI


Herói é quem num muro branco inscreve

O fogo da palavra que o liberta:

Sangue do homem novo que diz povo

e morre devagar de morte certa.


Homem é quem anónimo por leve

lhe ser o nome próprio traz aberta

a alma à fome fechado o corpo ao breve

instante em que a denúncia fica alerta.


Herói é quem morrendo perfilado

Não é santo nem mártir nem soldado

Mas apenas por último indefeso.



Homem é quem tombado apavorado

dá o sangue ao futuro e fica ileso

pois lutando apagado morre aceso.



De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

UN OBISPO


El OBISPO levantó el brazo,

quemó en la plaza los libros

en nombre de su Diós pequeño

haciendo humo las viejas hojas

gastadas por el tempo oscuro.


Y el humo no vuelve del cielo.



De PABLO NERUDA



sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

RECEITA DE MULHER


AS MUITO FEIAS que me perdoem

Mas beleza é fundamental. É preciso

Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso

Qualquer coisa de dança,qualquer coisa de "haute couture"

Em tudo isso (ou então

Que a mulher se socialize elegantemente em azul como

na Repíblica Popular Chinesa)

Não há meio-termo possível. É preciso

Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito

Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada

/e que um rosto

Adquira de vez em quando essa côr só encontrável no

/terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser,mas que se reflita

/a desabroche

No olhar dos homens. É preciso,é absolutamente preciso

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas

/pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços

Alguma coisa além da carne: que se os toque

Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola

/ante o pássaro

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um

/templo e

Seja leve como um rosto de nuvem:mas que seja uma nuvem

Com olhos e nádegas. Nádegas é impotantíssimo. Olhos então

Nem se fala. Que olhem com uma certa maldade inocente.Uma boca

Fresca(nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras: que uns ossos

Despontem,sobretudo a rótula no cruzar das pernas,e as pontas pélvicas

No enlaçar de uma cintura semovente.

Gravíssimo porém o problema das saboneteiras:uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. Indispensável

Que haja uma hipótese de barriguinha,e em seguida

A mulher se alteie em cálice, e que os seus seios

Sejam uma expressão greco-romana,mais que gótica ou barrôca

E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas

Sobretudo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal.

Os membros que terminem como hastes,mas bem haja um certo volume de coxas

E que elas sejam lisas,lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem

No entanto sensível à carícia em sentido contrário.

É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio

Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos

De forma que a cabeça dê por vezes a impressão

De nada ter a ver com o corpo,e a mulher não lembre

Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos

Discretos.A pele deve ser fresca nas mãos,nos braços,no dorso e na face

Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior

A 37 graus centrígados,podendo eventualmente provocar queimaduras

Do 1º grau.Os olhos que sejam de preferência grandes

E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e

Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão

Que é preciso ultrapassar.Que a mulher seja em princípio alta

Ou caso baixa,que tenha a atitude mental dos altos píncaros.

Ah,que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos

Ao abri-los ela não mais estará presente

Com o seu sorriso e suas tramas. Que ela surja,não venha;parta,não vá

E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber

O fel da dúvida. Oh, sobretudo

Que ela não perca nunca,não importa em que mundo

Não importa em que circunstâncias,a sua infinita volubilidade

De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma

Transforme-se em fera sem perder a sua graça de ave;e que exale sempre

O impossível perfume; e destile sempre

O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto

A sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina

Do efêmero e eu sua incalculável imperfeição.

Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de tôda a criação inumerável.



De Vinicius de Moraes





terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Auto - retrato nº 58468795 - 0025/a


Eu

O cidadão sem cor que entra diariamente

Pela porta de vidro e aço transparente

Assina o ponto pontualmente

E sorri ao redor com todos os dentes

E senta-se na mesa marrom bovinamente

Olha os papéis com duas lentes

Começa a carimbar maquinalmente

Passa as mãos nos cabelos feito pente

Engole de uma vez o cafezinho quase quente

Bate na máquina cada vez mais rapidamente

Com os olhos a brilhar loucamente

O juízo querendo escapar da mente

E conversa com todos suavemente

Recitando com língua de serpente

Olha o tempo passando velozmente

Cada vez sentindo-se mais carente

Amando com os olhos indecentes

Cada bunda que lhe passa pela frente

Pensando na morte muito constantemente

Um pavor que aumenta e se faz presente

A certeza chegando lentamente

De um futuro tão deprimente

Que só sabe dizer,infelizmente

Que um dia irá solenemente

Vingar-se de toda essa gente

Não sou

Eu

Que queria por tudo ser poeta

E se esse desejo é muita pretensão

Ser pelo menos uma pessoa aberta

Sem ter que camuflar o coração

Ter um sorriso de batom na boca

E um papagaio do ombro ao dedo

Queria ser aquele eterno arlequim

Que entra sem medo na roda das crianças

Amigo bem chegado em qualquer botequim

Na ponta da língua sempre uma esperança

De mudar esse mundo de porradas e torturas

Onde o dinheiro vale mais que a palavra

A empresa vale mais que a pessoa

A máquina vale mais que o ser humano

E nada valem as festas e as missas

Quero ser simples e doce como rapadura

Lutar para que a terra seja de quem a lavra

E a vida sobre ela seja boa

E não se alimente mais a fome

Nem se precise implorar por justiça



De GERSON DESLANDES,in POETAGEM

(Vencedor do V Prêmio Literário Livraria Asabeça 2006/Categoria POESIA)

Foto do poeta,apresentando a sua "punheta" no Reveillon familiar de 2007/2008)

domingo, 6 de janeiro de 2008

LUÍS DE CAMÕES


Tinha uma flauta.

Não tinha mais nada mas tinha uma flauta

tinha um órgão no sangue uma fonte de música

tinha uma flauta.


Os outros armavam-se mas ele não:

tinha uma flauta.

Os outros jogavam perdiam ganhavam

tinham Madrid e tinham Lisboa

tinham escravos na Índia mas ele não:

tinha uma flauta.


Tinham navios tinham soldados

tinham palácios e tinham forcas

tinham igrejas e tribunais

mas ele não:

tinha uma flauta.


Só ele Príncipe.

Dormiam rainhas na cama do rei

princesas esperavam no belvedere

Ele tinha uma escrava que morreu no mar.


Morreram escravas as rainhas

morreram escravas as princesas

nenhum teve o seu rei

para nenhuma chegou o Príncipe.

Por isso a única rainha

foi aquela escrava que morreu no mar:

só ela teve

o que tinha uma flauta.


Morreram os reis que tinham impérios

morreram os príncipes que tinham castelos

mas ele não:

tinha uma flauta.


De fora vieram reis

vieram armas de fora

os príncipes entregaram armas

ficou sem armas o povo.

As armas de fora venceram

todas as armas de dentro.

Só não venceram o que não tinha armas:

tinha uma flauta.


E as vozes de fora mandaram

calar as vozes de dentro.

Só não puderam calar aquela flauta.

Vieram juízes e cadeias.

Mas a flauta cantava.

Passaram por todas as fronteiras.

Só não puderam passar

pela fronteira

daquela flauta.


E quando tudo se perdeu

ficou a arma do que não tinha armas:

tinha uma flauta.


Ficou uma flauta que cantava.

E era uma Pátria.


In O CANTO E AS ARMAS

De MANUEL ALEGRE

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

PÁTRIA


Por um país de pedra e vento duro

Por um país de luz perfeita e clara

Pelo negro da terra e pelo branco do muro


Pelos rostos de silêncio e de paciência

Que a miséria longamente desenhou

Rente aos ossos com toda a exactidão

Dum longo relatório irrecusável


E pelos rostos iguais ao sol e ao vento


E pela limpidez das tão amadas

Palavras sempre ditas com paixão

Pela cor e pelo peso das palavras

Pelo concreto silêncio limpo das palavras

Donde se erguem as coisas nomeadas

Pela nudez das palavras deslumbradas


- Pedra rio vento casa

Pranto dia canto alento

Espaço raiz e água

ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar

E o exílio se inscreve em pleno tempo.



Foto retirada de silvarosamaria.no.sapo.pt

Poema de SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN