segunda-feira, 31 de março de 2008
NONA SINFONIA
É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.
Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.
Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.
Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
De José Carlos Ary dos Santos
sexta-feira, 28 de março de 2008
AGIOTAS
Tempo de compras e vendas,
Tempo de vendas e compras.
Ai perfil, tempo de lendas
Ai Tempo, perfil de sombras.
As vendas dão suas rendas.
As rendas dão suas compras.
E o que se compra com lendas
Vende-se em somas redondas.
Lembra-te Morte das vendas
Das ofertas que não compras
Abre as cortinas. Arreda
Tuas clareiras sem sombras.
Por um espaço que desvendas.
Pelas misérias que sondas
Nos crimes dos camaradas
Que assinam, por sobre as ondas
Do amor,fuzilamentos,
Deportações, hediondas
Assinaturas de vendas
Ao preço de suas compras.
Pois que dormes,não acordas.
Mas se acordas,não entendas
O longo soar das cordas
O longo fluir das lendas.
Pois se entendes,paira em sombras.
Pois se os entendes, não vendas
À poesia de imaturos
A poesia dos mais puros.
Pois se os entendes, não vendas
Aos irmãos dos assassinos,
A poesia dos meninos.
Ó Morte que és imortal
E tens um reino sem Tempo
E separas a verdade
Da mentira a fogo lento,
Tu que segues fascinada
Os dias aventureiros,
Te deitas com os amantes
E com os santos primeiros,
Tu que possuis, possuída
Pela vida a tua morte,
Pela morte a tua vida,
Traça,no ar, os sinais
Dessas fugazes histórias,
Esconjura, ao som de metais,
Vermes,vómitos,vitórias
Desses anões ancestrais
Mercadores de velhos cais
Mas marinheiros jamais!
Agiotas,agiotas.
Fotografia de NILTON PAVIN
segunda-feira, 24 de março de 2008
BALANÇO DO FILHO MORTO
HOMEM SENTADO na cadeira de balanço
Sentado na cadeira de balanço
Na cadeira de balanço
De balanço
Balanço do filho morto.
Homem sentado na cadeira de balanço
Todo o teu corpo diz que sim
Teu corpo diz que sim
Diz que sim
Que sim,teu filho está morto.
Homem sentado na cadeira de balanço
Como um pêndulo,para lá e para cá
O pescoço fraco,a perna triste
Os olhos cheios de areia
Areia do filho morto.
Nada restituirá teu filho à vida
Homem sentado na cadeira de balanço
Tua meia caída,tua gravata
Sem nó,tua barba grande
São a morte
são a morte
A morte do filho morto.
Silêncio de uma sala: e flôres murchas,
Além,um pranto frágil de mulher
Um pranto...o olhar aberto sobre o vácuo
E no silêncio a sensação exacta
Da voz,do riso,do reclamo débil.
Da órbita cega os olhos dolorosos
Fogem,moles,se arrastam como lesmas
Empós a doce,inexistente marca
Do vómito,da queda,da mijada.
Do braço foge a tresloucada mão
Para afagar a imponderável luz
De um cabelo sem som e sem perfume.
Fogem da boca lábios pressurosos
Para o beijo incolor na pele ausente.
Nascem ondas de amor que se desfazem
De encontro à mesa,à estante,à pedra mármore.
Outra coisa não há senão o silêncio
Onde com pés de gêlo uma criança
Brinca,perfeitamente transparente
Sua carne de leite,rosa e talco.
Pobre pai,pobre,pobre,pobre,pobre
Sem memória,sem músculos,sem nada
Além de uma cadeira de balanço
No infinito vazio... o sofrimento
Amordaçou-te a boca de amargura
E esbofeteou-te palidez na cara.
Ergues nos braços uma imagem pura
E não teu filho; jogas para cima
Um bocado de espaço e não teu filho
Não são cachos que sopras,porém cinzas
A asfixiar o ar onde respiras.
Teu filho é morto; talvez fosse um dia
A pomba predileta,a glória,a messe
O teu porvir de pai; mas nôvo e tenro
Anjo,levou-o a morte com cuidado
De vê-lo tão pequeno e já exausto
De penar - e eis que agora tudo é morte
Em ti,não tens mais lágrimas, e amargo
É o cuspo do cigarro em tua boca.
Mas deixa que eu te diga,homem temente
Sentado na cadeira de balanço
Eu que moro no abismo,eu que conheço
O interior das entranhas das mulheres
Eu que me deito à noite com os cadáveres
E liberto as auroras do meu peito:
Teu filho não morreu! a fé te salva
Para a contemplação da sua face
Hoje tornada a pequenina estrêla
Da tarde,a jovem árvore que cresce
Em tua mão: teu filho não morreu!
Uma eterna criança está nascendo
Da esperança de um mundo em liberdade.
Serão teus filhos,todos,homem justo
Iguais ao filho teu; tira a gravata
Limpa a unha suja,ergue-te,faz a barba
Vai consolar tua mulher que chora...
E que a cadeira de balanço fique
Na sala,agora viva,balançando
O balanço final do filho morto.
De Vinicius de Moraes
sexta-feira, 21 de março de 2008
DIA MUNDIAL DA POESIA/ANUNCIAÇÃO DA PRIMAVERA
São as primeiras frésias do ano:
vieram da Holanda
para que a primavera entrasse
em janeiro pela casa dentro.
Com seu aroma e o vento solar
farei o lume,
farei o lume onde aquecer as mãos
e de chama em chama regressar
às oliveiras do sul lentas e claras,
ao azul estendido nas pedras nuas
da Cantareira,
aos pardais ardendo nos ramos
do crepúsculo com a luz derradeira.
De Eugénio de Andrade
Pintura "La Primavera" de Botticelli
quarta-feira, 19 de março de 2008
VOSSOS NOMES
No chumbo,no terror,na morte,com sangue escrevo vossos nomes.
Na pedra,no ácido,neste branco muro escrevo vossos nomes.
Nas trevas,no medo,na raiz da aurora escrevo vossos nomes.
No sonho,nos ventos,na flor do trigo escrevo vossos nomes.
No aço das duras tarefas,no relâmpago escrevo vossos nomes.
No amor,na cólera,na fome desta ave escrevo vossos nomes.
No sol que levamos,na verde esperança escrevo vossos nomes.
No riso,nas lágrimas,no coração da pátria escrevo
e semeio
vossos nomes.
No ventre em flor da minha amada semeio,escrevo
e multiplico
vossos nomes.
De PAPINIANO CARLOS in "Caminhemos Serenos"
segunda-feira, 17 de março de 2008
CONTRA AS LEIS
A partir de hoje pende-me ao pescoço
De um fio de cabelo o relógio das horas:
A partir de hoje cessa o curso dos astros,
E o sol,e o cantar do galo e as sombras;
E o que o tempo jamais me anunciou
É agora surdo e mudo e cego : -
Toda a Natureza agora se me cala
Ao tique-taque da lei e do relógio.
De F.Nietzsche
Foto de António Dias
sexta-feira, 14 de março de 2008
ANTES DA PÁSCOA
Eu sou um poeta
Não tenho passado
Nem tenho futuro
Sou iluminado
E vivo no escuro
A calma me inquieta
Vivo do sol
Do vento,das chuvas
Das mulheres que imagino
Estátuas nuas
Ou vestidas de linho fino
Dedos vivos nas luvas
E pernas meio quentes
Olho a cidade
Da minha janela
Penso muito mais nela
Do que ela em mim
Tudo é meio assim
Sombrio,ardente,pateta
Sou mesmo o poeta?
A vida nasce e morre
No poente.
De Gerson Deslandes,in POETAGEM
Foto "Início da noite em Ipanema" de John Kirchhofer
quarta-feira, 12 de março de 2008
A ALMA LUSITANA
sábado, 8 de março de 2008
dia da mulher/BALADA A UMA VELHINHA
Num banco de jardim uma velhinha
está só com a sombrinha
que é o seu pano de fundo.
Num banco de jardim uma velhinha
está sózinha,não há coisa
mais triste neste mundo.
E apenas fez ternura,não fez pena
não fez dó,
pois tem no rosto um resto de
frescura.
Já coseu alpergatas e
bandeiras
verdadeiras.
Amargou a pobreza até ao fundo.
Dos ossos fez mesas e as
cadeiras,
as maneiras
que a fazem estar sentada sobre o
mundo.
No jardim ela
à trepadeira das canseiras
das rugas onde o tempo
é mais profundo.
Num banco de jardim uma velhinha
nunca mais estará sózinha,
o futuro está com ela,
e abrindo ao sol o negro da
sombrinha,poidinha,
o sol vem namorá-la da janela.
Se essa velhinha fosse
a mãe que eu quero,
a mãe que eu tinha,
não havia no mundo outra mais
bela.
Num banco de jardim uma velhinha
faz desenhos nas pedrinhas
que,afinal,são como eu.
Sabe que as dores que tem também
são minhas,
são moinhas do filho a desbravar
que Deus lhe deu.
E,em volta do seu banco,os
malmequeres e as andorinhas
provam que a minha mãe nunca
morreu.
De Ary dos Santos
terça-feira, 4 de março de 2008
NÃO
Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir em paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas,perfis.
Amar a sombra,a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor.
De quem nunca nos encontra.
De Natércia Freire
Ilustração de Mário Silva
sábado, 1 de março de 2008
ELEGIA DE TIPASÁ
As armas - me perguntam - e desarmado
sentado em Tipasá pergunto ao mar:
em que verso em que tempo em que país
se venceu desarmado o ódio armado?
E o Tempo passa em Tipasá e diz:
que só por minhas mãos me posso armar.
E pena a pena passa o Tempo enquanto
passo a passo não passa esta saudade
não do que foi mas só do que será
- tempo futuro e arma do meu canto.
Que desarmado eu vi em Tipasá
armar-se de saudade a liberdade.
Porque vais a correr Tempo que passas
em Tipasá onde há Romas e Parmas
nestas pedras que são tempo passado?
E caem-me das mãos como de taças
as palavras que são amor mudado
em versos desarmados - minhas armas.
E passa o Tempo aqui onde não passa
a saudade que pena a pena passo.
Sobre as pedras passadas tempo novo:
Argélia onde foi França em cada praça.
Tempo que passas:quando é que meu povo
terá o seu tempo no seu próprio espaço?
E vai-se uma gaivota para o sul
Como o Tempo se vai como ele voa
como o Tempo seu voo é uma saudade.
E como o Tempo deixa um rastro azul
a gaivota que deixa sobre a tarde
em Tipasá um rastro de Lisboa.
E as armas - me perguntam.E desarmado
sentado em Tipasá pergunto ao mar.
E doem-me os minutos como farpas
cravados na canção que é já passado.
Abre-se o Tempo em mim com suas harpas
que poderei fazer se não cantar?
E o Tempo é uma canção do Rei de Tule.
Não peçam aos meus versos madrugadas
que não posso cantar como quereis
e já o Tempo mais que um rastro azul
deixou desertos nas palavras. Eis
minhas palavras nuas como espadas.
Eis estas armas que não são auroras
nem as pombas da paz que me pedis
- só palavras (sem armas) pelo ar. Mas
se vos servir o sangue destas horas
armai-vos do meu canto - que são armas
meus versos a sangrar por meu país.
De MANUEL ALEGRE
in O CANTO E AS ARMAS
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