quinta-feira, 29 de maio de 2008

CORO DA PRIMAVERA


Cobre-te canalha
Na mortalha
Hoje o rei vai nu

Os velhos tiranos
De há mil anos
Morrem como tu

Abre uma trincheira
Companheira
Deita-te no chão

Ergue-te ó sol de verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

Livra-te do medo
Que bem cedo
Há-de o sol queimar

E tu camarada
Põe-te em guarda
Que te vão matar

Venham lavradeiras
Mondadeiras
Deste campo em flor

Venham enlaçadas
De mãos dadas
Semear o amor

Poema e música de José Afonso
Guernica,de Pablo Picasso

terça-feira, 27 de maio de 2008

A MASCARILHA


O sarcasmo veludo dos teus dedos
toca-me nas pálpebras.
Não há nenhum sorriso borboleta tonta que não morra
voando em torno do teu silêncio
nenhum olhar lantejoula que não brilhe
bordado no teu rosto
nenhum riso vidrilho que não fira
cromado nos teus dentes.

Amo-te meu amor aceso no lustre
da sala maior do nosso encontro
trémulo da música que ninguém ouve
máscara palavra que ninguém murmura
mármore convite incógnito que ninguém segreda.
Amo-te meu amor alcatifa persa
colorido mosaico dos minutos que invento
espelho de Veneza bailarina russa
de cabelos negros e de olhos de vento.
Amo-te meu amor decote de imperatriz
ave do paraíso anel de veneno
orquídea perfídia bordada a matiz
no rosto mistério que te não desvendo.

De Ary dos Santos

sexta-feira, 23 de maio de 2008

DESDE A AURORA


É um poema de Eugénio de Andrade.

DESDE A AURORA

Como um sol de polpa escura
para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,

entre os veios do sono
e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:

vai entrar o vento ou o violento
aroma duma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:

é tempo de colher: a noite
iluminou-se bago a bago: vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.

Sou eu,desde a aurora,
eu - a terra - que te procuro.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

CANTAR ALENTEJANO/NO ANIVERSÁRIO DO ASSASSINATO DE CATARINA EUFÉMIA(19 de Maio de 1954)


Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p'ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p´ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar



Poema e música de José Afonso,in Cantigas do Maio
Gravura de Dias Coelho(também ele assassinado pela PIDE)

sexta-feira, 16 de maio de 2008

GUATEMALA



Guatemala la dulce,cada losa
de tu mansión lleva una gota
de sangre antigua devorada
por el hocico de los tigres.
Alvarado machacó tu estirpe,
quebró las estelas astrales
se revolcó en tus martírios.

Y en Yucatán entró el obispo
detrás de los pálidos tigres.
Juntó la sabiduría
más profunda oída en el aire
del primer día del mundo,
quando el primer maya escribió
anotando el temblor del río,
la ciencia del polen,la ira
de los Dioses del Envoltorio,
las migraciones a través
de los primeros universos,
las leyes de la colmena,
el secreto del ave verde,
el idioma de las estrellas,
secretos del dia y la noche
cogidos en las orillas
del desarrollo terrenal!

De Pablo Neruda in Alturas de Macchu Picchu

segunda-feira, 12 de maio de 2008

O FALSO MENDIGO


Minha Mãe,manda comprar um quilo de papel almaço na venda
Quero fazer uma poesia.
Diz a Amélia para preparar um refresco gelado
E me trazer muito devagarinho.
Não corram,não falem,fechem todas as portas a chave
Quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem,só estou para Maria
Se fôr o Ministro,só recebo amanhã
Se fôr um trote,me chame depressa
Tenho um tédio enorme da vida.
Diz a Amélia para procurar a Patética no rádio
Se houver um grande desastre vem logo contar
Se o aneurisma de dona Ãngela arrebentar,me avisa
Tenho um tédio enorme da vida.
Liga para vovó Nenen,pede a ela uma ideia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir,pelo amor de Deus,me acordem
Não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme de vida.
Minha Mãe estou com vontade de chorar
Estou com taquicardia,me dá um remédio
Não,antes me deixa morrer,quero morrer,a vida
Já não me diz mais nada
Tenho horror da vida,quero fazer a maior poesia do mundo
Quero morrer imediatamente.
Fala para o Presidente para fecharem todos os cinemas
Não aguento mais ser censor.
Ah,pensa uma coisa,minha Mãe,para distrair teu filho
Teu falso,teu miserável,teu sórdido filho
Que estala em fôrça,sacrifício,violência,devotamento
Que podia britar pedra alegremente
Ser negociante cantando
Fazer advocacia com o sorriso exato
Se com isso não perdesse o que por fatalidade de amor
Saber ser o melhor,o mais doce e o mais eterno da tua puríssima carícia.

De Vinicius de Moraes
Pintura de Rembrandt


sexta-feira, 9 de maio de 2008

OS INSTRUMENTOS


Desapareceram os símbolos das cidades.
Os instrumentos dos símbolos ainda não desapareceram.

É possível que,de repente,de leste a oeste,de oriente a ocidente,
Nas paredes,no ar,no solo,nos canteiros,
Nos velhos troncos de árvores,
Nos jogos de água viva,

Nas mudas bibliotecas,em livros esquecidos,
Nos palcos dos teatros,nas eléctricas luzes,
Nas orquestras sem pátria dos músicos planetas,

Se revelem sinais,locais de Ásias secretas.

Mas da cegueira à paz,vão ângulos de som.
Os vértices de amor,oscilam ténues fumos.

Os símbolos são homens,esventrados em explosões,
São Osíris dispersos.Deuses em negros versos.
Dos olhos sem retinas - que já todos desvelam,
Dos gestos essenciais - pelos quais todos choram,

Se compõe esta frente em marcha silenciosa,
De esotéricas vidas e histórias demolidas.

De superfícies brancas em sinfonias brancas,
De surdos e de loucos,orquestradas nas ondas.

Bronzes de águas abertas,nas cascatas libertas,
Dos países do Ar para os dias de Sombra.

Por visitar a Lua recebe-se a Loucura.
Por visitar a Luz,recebe-se a cegueira.

É preciso dormir como quem apodrece
E sossegar no pó,sem pena de ser só.

De Natércia Freire
Pintura de Rubens (O rapto da Europa)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

TOMA TOMA TOMA


Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes,contundidos,esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.

O padreca,o diabo,a criadita,
o tarata,a velha alcoviteira,o galã
e,às vezes,um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.

De Alexandre O'Neill

quinta-feira, 1 de maio de 2008

HERACLITISMO


Da terra toda a sorte
A luta a dá,Amigos!
Sim,pra se ver amigo
Fumo de pólvora é preciso!
Uma das três são os amigos:
Irmãos ante o perigo,
Iguais ante o inimigo,
Livres - ante a morte!

De F.Nietzsche