domingo, 29 de junho de 2008

CLASSIFICADOS




Vendo vestido de noiva

Manchado de sangue

Dou um cavalo sem dentes

Que já foi ator de bang-bang

Arranjo cego em bom estado

Com bastante experiência

Reservo lugar numerado

Na fila da previdência


Família americana deixa

Pra quem quiser faturar

No quinto degrau da igreja

Uma fome parada no ar

Crianças recém-nascidas

Pra trabalhar no sinal

Meninos malabaristas

Duplicando seu capital


Por motivo de viagem

Faço negócio da china

Troco por boa massagem

O verdadeiro mapa da mina


Vendo bom formicida

Cura de qualquer paixão

Passo contrato de vida

Alugo um prato de feijão


De Gerson Deslandes,in Poetagem

sexta-feira, 27 de junho de 2008

RUPTURA


A noite fende --

o silêncio

escorre do muro.

De quanto os dedos

lembram ainda,

só o vento respira.


Já a minúscula

língua da erva

chama pela neve.


O silêncio

é o meu domínio:

a terra é leve.


De Eugénio de Andrade

terça-feira, 24 de junho de 2008

A QUE MORREU ÀS PORTAS DE MADRID


A que morreu às portas de Madrid,

com uma praga na boca

e a espingarda na mão,

teve a sorte que quis,

teve o fim que escolheu.

Nunca,passiva e aterrada,ela rezou.

E antes de flor,foi,como tantas,pomo.

Ninguém a virgindade lhe roubou

depois de um saque - antes a deu

a quem lha desejou,

na lama dum reduto,

sem náuseas,mas sem cio,

sob a manta comum,

a pretexto do frio.

Não quis na retaguarda aligeirar

entre champanhe,aos generais senis,

as horas de lazer.

Não quis,activa e boa,tricotar

agasalhos pueris,no sossego dum lar.


Não sonhou minorar,

num heroísmo branco,

de bicho de hospital,

a aflição dos aflitos.


Uma noite,às portas de Madrid,

com uma praga na boca,

e a espingarda na mão,

à hora tal,atacou e morreu.


Teve a arte que quis.

Teve o fim que escolheu.


In Poemas,de Reinaldo Ferreira

domingo, 22 de junho de 2008

NA MESA DO SANTO OFÍCIO


Tu lhes dirás,meu amor,que nós não existimos.

Que nascemos da noite,das árvores,das nuvens.

Que viemos,amámos,pecámos e partimos

Como a água das chuvas.


Tu lhes dirás,meu amor,que ambos nos sorrimos

Do que dizem e pensam

E que a nossa aventura,

É no vento que passa que a ouvimos,

É no nosso silêncio que perdura.


Tu lhes dirás,meu amor,que nós não falaremos

E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.

Tu lhes dirás,meu amor,se for preciso,

Que nos espreguiçaremos na fogueira.


De Ary dos Santos

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O ESCARNINHO


Deixo cair muitas coisas e rolar,

Por isso vós me chamais escarninho,

Quem bebe por copos muito cheios,

Muito ele deixa cair e rolar - ,

Mas nem por isso pensa mal do vinho.



De Nietzsche

Pintura:"Os bêbedos" de Malhoa

segunda-feira, 16 de junho de 2008

HARMÓNIO


Como ladrão ou mulher

pública: vens de noite.

Trazes o harmónio,

a masculina

música roubada às fontes.

Não te esperava;só uma vez

te esperei tremendo de amor:

eu era tão pequeno

que não me viste.

Nem uma palavra ousas;

só os olhos suplicam que te roube

à morte,que devolva ao sol

a modesta desordem dos teus dias.

Que escute ao menos a pobre

e rouca e desamparada

música do teu pequeno harmónio.


De Eugénio de Andrade

sexta-feira, 13 de junho de 2008

CANTO FRANCISCANO


Por onde passaste tu

que não soubeste passar?

Pela sandália do tempo

pelo cílio do luar

pelo cilício do vento

pelo tímpano do mar?

Por onde passaste tu

que não soubeste passar?


Por onde passaste tu

que me ficaste cá dentro

tenaz do fogo divino

irmão pinho ou aloendro?

Por onde passaste tu

que me ficaste cá dentro?


Pois bem: nos campos da fome

ou nos caminhos do frio

se eu encontrasse o teu nome

lançava-te o desfio:

por onde passaste tu

pétala viva dos pobres

irmão dos cardos dos cerdos

rei das chagas e dos podres

- por onde passaste tu

não passaram minhas dores!


Nasci da mãe que não tive

do pai que nunca terei

e aquilo que sobrevive

é o irmão que não sei:

uma espécie de fogueira

de corpo que me deslumbra.

Tudo o mais à minha beira

é uma réstia de sombra.

- Por onde passaste tu

com artelhos de penumbra?


Eis-me. Eis-me: Incendiado

por não saber perdoar.

Meu irmão passa de lado:

- Eu sei como hei-de passar.


De Ary dos Santos

Na comemoração do Dia de Santo António de Lisboa

quarta-feira, 11 de junho de 2008

AS PALAVRAS DOS HOMENS


Abriu-se uma cisterna em cada sílaba.

Não temos outro vinho amigo

só as nossas palavras

pequenas grandes como um homem

fortes e fracas

porque de barro.

Alegres e tristes

por vezes exaltadas

por vezes cantando baixo

mas nunca nunca resignadas.

Eis as nossas palavras simples e fraternas.


Em cada sílaba um alqueire de esperança.

Não temos outro pão amigo

só as nossas palavras

pequenas e grandes.

E de barro também.

Proibidas é certo. Porém livres

livres como um homem.


De Manuel Alegre,in A Praça da Canção

domingo, 8 de junho de 2008

SANTA MARIA LA BLANCA


Santa Maria La Blanca

Da Catedral de Toledo:

Que bem aqui ficarias

Debruçada no presépio,

Com o teu arzinho de névoa,

De mistério e de segredo,

Santa Maria La Blanca

Da Catedral de Toledo.


Soçobrava,ao sol da tarde,

El Tajo de corpo fino.

Corre o Tejo aqui à beira.

Vós não teríeis saudades,

Virgem Branca e meu menino.

Soçobrava,ao sol da tarde,

El Tajo de corpo fino.


Cantavam pássaros loucos

No claustro da catedral.

Também eu te cantaria,

Por seres a Virgem Maria

E ser noite de Natal.

Cantavam pássaros loucos

No claustro da catedral!


Com teu arzinho de névoa

Podias mostrar-te ao Mundo.

Com teus dedos de água pura

Podias banhar o Mundo,

Iluminar com teus passos

Os pinhais de todo o Mundo

Nesta noite de Natal.

Trazer o Reino dos Céus

Para os caminhos do Mundo

Porque os homens vão matar

O teu menino,no Mundo!


Porque esperas,Virgem Branca,

Da Catedral de Toledo?!

Porque sorris,Virgem Branca!?

Não sabes? Mataste o Medo?

Gabriel não disse tudo?

Para a Dor inda era cedo...

Mas que névoa no teu ar

De mistério e de segredo,

Santa Maria Blanca

Da Catedral de Toledo.


De Natércia Freire

quinta-feira, 5 de junho de 2008

ELOGIO BARROCO DA BICICLETA




Para Gerson,pela victória do Flu


Redescubro,contigo,o pedalar eufórico

pelo caminho que a seu tempo se desdobra,

reolhando os beirais - eu que era um teórico

do ar livre - e revendo o passarame à obra.


Avivento,contigo,o coração,já lânguido

das quatro soníferas redondas almofadas

sobre as quais me entangui e bocejei,num trânsito

de corpos em corrida,mas de almas paradas.


Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,

ó tubular engonço,ó vaca e andorinha,

ó menina travessa da escola fugida,

ó possuída brincadeira,ó querida filha,


dá-me as asas - trrrim! trrrim! - pra que eu possa traçar

no quotidiano asfalto um oito exemplar.


De Alexandre O'Neill

domingo, 1 de junho de 2008

A PALAVRA


À palavra viva é que eu tenho amor:
Salta tão jovial ao nosso encontro,
Saúda com gesto gracioso,
É bela mesmo sem jeito,
Tem sangue,é capaz de esbravejar com brio,
E então entra até nas orelhas de um surdo,
Encaracola-se e põe-se a voar,
E em tudo o que faz - a palavra encanta.

Mas a palavra é um ser delicado,
Ora doente,ora outra vez sadia.
Se lhe queres poupar a pequenina vida,
Tens de lhe pegar com leveza e graça,
Sem a apalpares nem a apertares à bruta,
Que ela morre por vezes já de um mau olhar
E aí fica ela,tão desfigurada,
Tão sem alma,tão pobre e fria,
O seu corpinho a tal ponto transformado,
Da morte e da agonia mal-tratado.

Uma palavra morta - feia coisa,
Um chocalhante e seco cling-ling-ling.
Fora esses ofícios hediondos
Que fazem morrer as palavrinhas!

De F.Nietzsche
Gravura de Durer,1514