terça-feira, 26 de agosto de 2008

A BARCA MISTERIOSA


Ontem à noite,quando tudo já dormia
E o vento com suspiros indecisos,
Pelas vielas mal corria,
Nenhum repouso me dava o travesseiro,
Nem a papoula,nem o que de resto
Dá sono profundo - a consciência tranquila.

Expulsei por fim da ideia do sono
E corri para a praia. Havia luar
E o tempo estava ameno, - encontrei
Homem e barco sobre a areia quente,
Sonolentos ambos,pastor e ovelha: -
Sonolento o barco se afastou de terra.

Uma hora,talvez mesmo duas,
Ou foi um ano? - Então,de súbito,
Espírito e pensamentos mergulharam
Numa eterna monotonia,
E um abismo sem limites
Se abriu: - e tudo acabou!

- A manhã chegou: sobre profundas negras
Está um barco que repousa,repousa...
Que aconteceu? Ouviu-se um grito,e em breve
Mais cem gritos: Que houve? Sangue? - -
Nada aconteceu! Dormimos,dormimos
Todos - ai,tão bem! tão bem!

De F. Nietzsche

terça-feira, 19 de agosto de 2008

MEU GALOPE É EM FRENTE



Direis que não é poesia
e a mim que importa?

Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espectam
e aos braços que me chamam.
E porque,dia e noite,minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos sempre esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.

O meu grito e meu canto é a voz de milhões.

Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.

Direis que não é poesia.
E a mim que me importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?

Eu sigo e seguirei
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos campos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra,mar e ar.

Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não,meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça,a outro mundo,a outra gente.

É andar,é andar!

De Mário Dionísio (1916 - 1993)

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA



Já não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças,nem ameaças,nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

De Sidónio Muralha (1920 - 1982)


quarta-feira, 6 de agosto de 2008

O INFANTE


Deus quer,o homem sonha,a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda una,
Que o mar se unisse,já não separasse.
Sagrou-te,e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou,correndo,até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira,de repente,
Surgir,redonda,do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar,e o Império se desfez.
Senhor,falta cumprir-se Portugal!

De Fernando Pessoa (1888 - 1935)

domingo, 3 de agosto de 2008

LIBERDADE


Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado,amordaçado,em sangue,exausto
e,mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.

De Armindo Rodrigues (1904 - 1993)