quinta-feira, 23 de outubro de 2008

CAEIRO


Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito.


Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?


Não creio no infinito,não creio na eternidade.


Creio que o espaço começa numa parte e numa parte acaba


E que agora e antes d'isso ha absolutamente nada.


Creio que o tempo tem um princípio e tem um fim,


E que antes e depois d'isso não havia tempo.


Porque ha-de ser isto falso? Falso é fallar de infinitos


Como se soubessemos o que são de os podermos entender.


Não:tudo é uma quantidade de cousas.


Tudo é definidi,tudo é limitado,tudo é cousas.




De Fernando Pessoa


Poema inédito,sem data,transcrito por Jerónimo Pizarro

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

A UM PINTOR


Admiro a tua paciência vegetal,

o teu crescimento de raiz,

a tua pequena mão cega e certeira,

inocente,adequada e fiel,

a mão honesta e competente

que trazes a trabalhar na tela ou no papel,

a mão que abre janelas para o mundo

da nossa imaginação

e portas para a rua onde gastamos

o coração...


Que desenho,que desígnio traça a tua mão?


De Alexandre O'Neill
Desenho de Santa Rita Pintor

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

ARTE DOS VERSOS


Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves:mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.

De Eugénio de Andrade

domingo, 12 de outubro de 2008

ASSIM


Assim por muito mais e muito menos
Assim por heroísmo e cobardia.
Assim a tarde a noite no momento,
Assim pensar em mim quando vivias.

Assim os dedos longos nos cabelos
Dos mortos abraçados e cativos.
Assim esta miséria de estar viva
E não saber estar viva quando vivo.

Assim nas brancas árvores o tempo
Assim ter acabado o meu destino
E ler-me noutros versos,noutros nomes,
Assim desconhecer onde habito.

Assim por muito mais e muito menos
Se acaba,em vida,a vida ao suicida.

Assim por ser a hora mais cinzenta,
O desamparo assim da minha vida.

De Natércia Freire
Fotografia retirada de anomalias.weblog.com.pt

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

PIM PAM PUM


Cada bola mata um
Que leve as coisas a peito
Pim Pam Pum
Cada taxa mata um
Que à banca esteja sujeito
Pim Pam Pum
Cada bala mata um
Que se ponha a jeito
Pim Pam Pum
Não tenho medo algum
De quem ao sujeito
Presta preito
Pim Pam Pum
Inda acerto nalgum

PRESÍDIO DE SEGURANÇA MÍNIMA


A paixão é presídio
De segurança mínima
Tem toda a sorte
De jogos de azar
Tem quem fala
Tem quem ouve
Sem celular
Tem corredor da morte
Tem faltas de ar
Tem quem nem se importe
Tem quem corte os pulsos
Tem quem consegue fugir
Tem quem é expulso
Tem quem não tem
Pra onde ir
A paixão é presídio sagrado
De segurança mínima
Quando cheguei nessa vida
Já estava condenado

De Gerson Deslandes
Fotografia de Andreia Cruz

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

AMADOR CEA



Como habían detenido a mi padre
y pasó el Presidente que elegimos
y dijo que todos éramos libres,yo pedí que a mi viejo lo soltaran.
Me llevaron y me pegaron todo un día.
No conozco a nadie en el quartel. No sé,no puedo
ni recordar sus caras. Era la policía.
Cuando perdía el conocimiento,me tiraban
agua en el cuerpo y me seguían pegando.
En la tarde,antes de salir,me llevaron
arrastando a una sala de baño,
me empujaron la cabeza adentro de una taza
de W.C. llena de excrementos. Me ahogaba.
"Ahora,sal a pedir libertad al Presidente,
que te manda este regalo",me decían.
Me siento apaleado,esta costilla me la rompieron.
Pero por dentro estoy como antes,camarada.
A nosotros no nos rompen sino matándonos.

De Pablo Neruda
Pintura de Malangatana