quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

BALADA DAS MENINAS DE BICICLETEA




MENINAS de bicicleta

Que fagueiras pedalais

Quero ser vosso poeta!

Ó transitórias estátuas

Esfusiantes de azul

Louras com peles mulatas

Princesas da zona sul:

As vossas jovens figuras

Retesadas nos selins

Me prendem,com serem puras

Em redondilhas afins.

Que lindas são vossas quilhas

Quando as praias abordais!

E as nervosas pantorrilhas

No rotação dos pedais:

Que douradas maravilhas!

Bicicletai,meninada

Aos ventos do Arpoador

Sôlta a flâmula agitada

Das cabeleiras em flor

Uma correndo à gandaia

Outra com jeito de séria

Mostrando as pernas sem saia

Feitas da mesma matéria.

Permanecei! vós que sois

O que o mundo não tem mais

Juventude de maiôs

Sobre máquinas da paz

Enxames de namoradas

Ao sol de Copacabana

Centauresas transpiradas

Que o leque do mar abana!

A vós o canto que inflama

Os meus trint'anos,meninas

Velozes massas em chama

Eçplodindo em vitaminas.

Bem haja a vossa saúde

À humanidade inquieta

Vós cuja ardente virtude

Preservais muito amiúde

Com um selim de bicicleta

Vós que levais tantas raças

Nos corpos firmes e cruz:

Meninas: soltai as alças

Bicicletais seios nus!

No vosso rastro persiste

O mesmo eterno poeta

Um poeta - essa coisa triste

Escravizada à beleza

Que em vosso rastro persiste

Levando a sua tristeza

No quadro da bicicleta.


De Vinicius de Moraes

sábado, 24 de janeiro de 2009

INCOMPREENSÃO DOS MISTÉRIOS


Saudades de minha mãe.
Sua morte faz um ano e um fato
Essa coisa fez
eu brigar pela primeira vez
com a natureza das coisas:
que desperdício,que descuido
que burrice de Deus!
Não de ela perder a vida
mas a vida de perdê-la.
Olho pra ela e seu retrato.
Nesse dia,Deus deu uma saidinha
e o vice era fraco.

De Elisa Lucinda,Vitória(Espírito Santo)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

PERFILADOS DE MEDO


Perfilados de medo,agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos,do que não seremos.

Perfilados de medo,sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos,os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

De Alexandre O'Neill

sábado, 17 de janeiro de 2009

AS AMORAS


O meu país sabe às amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente,nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país,talvez
nem goste dele,mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
De Eugénio de Andrade

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

MORTE E TRANSFIGURAÇÃO


Cinzas,vergões,renúncias,cicatrizes,



Laceram-nos a esperança,mas dão outra.



Essa em que a dor nos faz criar raízes,



Árvore e fruto duma seiva nova.






Dos abismos da ira levantamos



As vozes,os protestos e as trombetas.



Só nos ouvimos quando nos calamos



E em vez de arautos nos tornamos poetas.






Cantores das coisas que nos doem,magos



Da nossa angústia,frémito das águas



Onde nos debruçamos,onde nós,






Narcisos do que é grande e impossível,



Nos transformamos por amor da voz



Enquanto a imagem nos parece inútil.






De Ary dos Santos



quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

O MUNDO QUE DEUS CRIOU


"O ideal português no mundo é o ideal do Mundo",Fernando Sylvan,escritor timorense,em sua homenagem


Se do choro das crianças

Ao coração trespassado por lanças,

Ai,por mais lanças

Que uma seara de agonia

E de gritos soluçados,

Aqui chegasse a infinita

Múrmura Noite de Morte

Ressuscitando nas vidas

Que sonham de olhos fechados

Em português se ouviria

O coro dos enjeitados.

Ai,meninos,como Anjos

Sonhando de olhos fechados.

E as noites se volvem dias

E os dias se volvem noites.

E a matar se fecham curvas

Nas ramadas entrançadas

De tanta dor,sangue e sede

De tanta dor,sangue e fome.

Nas promessas de verdade

Mulheres gemem em surdina

E o seu tormento se evade

Em brancos lutos,saudade,

De luas a gotejar sangue

(E o sangue como lume

É da cor do luar).

Vem do inferno entre gumes

Em prantos se desfaz

Vem do mistério entre lumes

Que apagam Amor e paz

Vem do inferno entre gumes

E em ruínas se desfaz


É mais uma voz que implora

A paz numa luz sem véus.

Parou o mundo? Parou,

O Mundo que Deus criou?


De Natércia Freire

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

PRINCESINHA


Sem selos
Um pequeno envelope sem espaço
De camelos
Só o traço
A seis
Dia de Reis
Com uma berraria electrónica
Nasceu a Mónica
Até com a mirra
Fez birra
Atirou com a fralda
Contestatária
Aí virou "Mafalda"
Sempre solidária

domingo, 4 de janeiro de 2009

RESÍDUOS DO CORPO


De ti ficam as aves,
o rumor
de arderem altas;
ficam as águas,
à tona
a clara sombra
onde pousaram lábios;
fica o outono,
desatado beijo a beijo
sobre a palha;
ficam as nuvens,
a sede ainda
de um ramo de coral.
De Eugénio de Andrade

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

RECEITA DE MULHER


AS MUITO FEIAS que me perdoem
Mas beleza é fundamental.É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul como na República Popular Chinesa)
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa côr só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser,mas que se reflita
a desabroche
No olhar dos homens. É preciso,é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas
pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne:que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah,deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola
ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um
templo e
Seja leve como um rosto de nuvem :mas que seja
uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos
então
Nem se fala. que olhem com uma certa maldade inocente.
Uma bôca
Fresca (nuca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem,sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo porém o problema das saboneteiras:uma
mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha,e em seguida
A mulher se alteie em cálice,e que os seus seios
Sejam uma expressão greco-romana,mais que gótica ou
barrôca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima
de cinco velas
Sobretudo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista o grande latifúndio
dorsal.
Os membros que terminem como hastes,mas bem haja
um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas,lisas como a pétala e cobertas de
suavíssima penugem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma
próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo,e a mulher não lembre
Flõres sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos
góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos,nos braços,
no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma
temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados,podendo eventualmente provocar
queimaduras
Do 1º grau. Os olhos que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro
de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio
alta
Ou caso baixa,que tenha a atitude moral dos altos
píncaros.
Ah,que a mulher dê sempre a impressão de que se
fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja,não
venha;parta,não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer
subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh,sobretudo
Que ela não perca nunca,não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias,a sua infinita
volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder a sua graça de ave;
e que exale sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
A sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna
dançarina
Do efêmero e eu sua incalculável imperfeição.
Constutua a coisa mais bela e mais perfeita de tôda a
criação inumerável.
De Vinicius de Moraes