terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

SENTIMENTO HUMANO


Vós, ó Deuses,grandes Deuses

No vasto céu,lá em cima,

Se vós nos désseis na terra

Mente firme,ânimo bom,

Oh! como vos deixaríamos

O vasto céu lá em cima!


De J.W.Goethe

domingo, 22 de fevereiro de 2009

RETRATO À SUA MANEIRA (João Cabral de Melo Neto)


MAGRO entre pedras

Calcárias possível

Pergaminho para

A anotação gráfica



O grafito Grave

Nariz poema o

Fêmur fraterno

Radiografável a



Olho nu Árido

Como o deserto

E além Tu

Irmão totem aedo



Exato e provável

No friso do tempo

Adiante Ave

Camarada diamante!
De Vinicius de Moraes


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

AR LIVRE


Ar livre que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!
Ar livre,digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte...
De par em par,pois então?!
Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)
Ar livre! Que ninguém canta
Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!
Ar livre,sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!
De Miguel Torga,in "Cântico do Homem"
Fotografia de Fotoplatforma.pl

domingo, 15 de fevereiro de 2009

É ASSIM


É assim:
a gente despede-se,vai-se
embora amaldiçoando a terra,
carrega amargura que nem o diabo
aguenta; com o tempo vai
esquecendo injustiças,mágoas,
injúrias,morrendo por regressar
ao cheiro da palha seca,ao calor
animal do estábulo,
ao sonho do quintalório
com três alqueires de milho ao sol
e dois pinheiros bravos - -
porque não há no mundo
outro lugar onde
enfim dê tanto gosto chafurdar.
De Eugénio de Andrade

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

CREPÚSCULO


Uma pátria de angústia
No lento anoitecer
Coroa o dia álgido
No verão de ardentes sóis.
Vão morrer os heróis.
A voz crepuscular
Dos campos e das ondas
Agoniza comigo.
E promete e promete
Imensas alquimias
Em braços de outros Dias.
Em bocas de outro Mar
Os deuses vão voltar.
Há quanto tempo eu estou
Marcada a fogo e ferro
Na paz do meu desterro
Na morte sem enterro.
Oiço-te,Mãe,na bruma
Tangendo às nossas filhas
Um instrumento de espuma
Forrado a sumaúma...
E ele,o meu ser de gelo,
O meu senhor de frio,
Amarra-me o cabelo
Aos flancos do navio.
De Natércia Freire
Fotografia de www.photocart.com

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

TRINTA DINHEIROS


No bengaleiro do mercado público
penduraram o coração.
Vestem o fato dos domingos fáceis.
Não têm rosto
têm sorrisos muitos sorrisos
aprendidos no espelho da própria podridão.
Têm palavras como sanguessugas.
Curvam-se muito.
As mãos parecem prostitutas.
Alma não têm. Penduraram a alma.
Por fora parecem homens.
Custam apenas trinta dinheiros.
De Manuel Alegre,in A Praça da Canção

domingo, 1 de fevereiro de 2009

PAVANA PARA UMA BURGUESA DEFUNTA

A cabeça de vaca de minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz. Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viuvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto se não fosse a gordura
o retrato na sala o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
- não me limpaste o pó a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória.



De Ary dos Santos