domingo, 31 de maio de 2009

NÃO PASSAM MAIS


Em nome dos nossos braços
em nome das nossas mãos
em nome de quantos passos
deram os nossos irmãos.
Em nome das ferramentas
que nos magoaram os dedos
das torturas das tormentas
das sevícias dos degredos.
Em nome daquele nome
que herdámos dos nossos pais
em nome da sua fome
dizemos: não passam mais!

E em nome dos milénios
de prisão adicionada
em nome de tantos génios
com a voz amordaçada
em nome dos camponeses
com a terra confiscada
em nome dos Portugueses
com a carne estilhaçada
em nome daqueles nomes
escarrados nos tribunais
dizemos que há outros nomes
que não passam nunca mais!

Em nome do que nós temos
em nome do que nós fomos
revolução que fizemos
democracia que somos
em nome da unidade
linda flor da classe operária
em nome da liberdade
flor imensa e proletária
em nome desta vontade
de sermos todos iguais
vamos dizer a verdade
dizendo: não passam mais!

Em nome de quantos corpos
nossos filhos foram feitos.
Em nome de quantos mortos
vivem nos nossos direitos.
Em nome de quantos vivos
dão mais vida à nossa voz
não mais seremos cativos:
o trabalho somos nós.

Por isso tornos enxadas
canetas frezas dedais
são as nossas barricadas
que dizem: não passam mais!

E em nome das conquistas
vindas nos ventos de Abril
reforma agrária controlo
operário no meio fabril
empresas que são do estado
porque o seu dono é o povo
em nome de lado a lado
termos feito um país novo.

Em nome da nossa frente
e dos nossos ideais
diante de toda a gente
dizemos: não passam mais!

Em nome do que passámos
não deixaremos passar
o patrão que ultrapassámos
e que nos queria trespassar.
E por onde a gente passa
nós passamos a palavra:
Cada rua cada praça
é o chão que o povo lavra.
Passaremos adiante
com passo firme e seguro.
O passado é já bastante
vamos passar ao futuro.

De Ary dos Santos

quinta-feira, 28 de maio de 2009

CÂNTICO DO PAÍS EMERSO (Excerto)


Desta vez havia turistas a bordo,turistas

Quase sempre cardíacos hepáticos às vezes;

Funcionários dos cruzeiros anuais que fazem

O périplo da África jogando bridge no salão;

Almas correctamente vestidas por alfaiates

Ingleses. Antípodas da virilidade

Demonstrada em actos de prestidigitação

(Meter no bolso um paquete de luxo e tirá-lo

Do peito transformado em Nação);


Desta vez havia os corvos civilizados

Do bloqueio. As gralhas metálicas dos linotipos

As câmaras dos deputados e as da televisão

A rádio,o cabo submarino,o veio

Do desencanto,do tédio,das tolices,

Duma humanidade que tem por condenação

Descrer da moderna possibilidade do Ulisses;

Os campos magnéticos para a propagação

Do folhetim lamechas do paquete. O paquete

Donzela pùblicamente desonrada. A empresa

Proprietária viúva do paquete

A subscrição para os órfão do paquete

O paquete o paquete o paquete

O paquete a troco das verdades omissas

As novenas as missas por alma do paquete

A coroa funerária dos sonhos adiados

Dos sonhos feriados por causa dessas missas...


De Natália Correia

domingo, 24 de maio de 2009

CAMINHO


Cem ginetes enlutados,
onde irão,
além,pelo céu jacente
do laranjal?
A Córdova ou a Sevilha
não chegarão.
Nem a Granada,a que suspira
pelo mar.
Esses cavalos sonolentos
irão levá-los
ao labirinto das cruzes
onde tirita o cantar.
Com sete ais cravados,
- onde irão
os cem ginetes andaluzes
do laranjal?


De Frederico García Lorca

quarta-feira, 20 de maio de 2009

CANÇÃO NOCTURNA

É noite:agora falam mais alto todas as fontes jorrantes.E a minha alma é também uma fonte jorrante.
É noite:só agora acordam todas as canções dos amantes.E a minha alma é também a canção de um amante.
Há em mim algo de insaciado,de insaciável que quer ganhar voz.Um desejo de amor há em mim,um desejo que fala ele mesmo a língua do amor.
Sou luz:ai,quem me dera ser noite!Mas é esta a minha solidão,estar cingido de luz.
Ai,quem me dera ser escuro e nocturno!Como eu havia de mamar nos peitos da luz!
E também vos abençoaria mesmo a vós,pequeninas estrelas cintilantes e pirilampos lá no alto! - e seria feliz com os vossos presentes de luz.
Mas eu vivo na minha própria luz,reabsorvo em mim as chamas que de mim brotam.
Não conheço a ventura de quem recebe;e muitas vezes sonhei que roubar deve dar mais felicidade ainda do que receber.
É esta a minha pobreza:nunca a minha mão descansar de dar;é esta a minha inveja:ver olhos à espera e as noites iluminadas de saudade.
Ó infelicidade de todos os que dão! Ó eclipse do meu sol! Ó desejo de desejar! Ó fome ardente na saciedade!
Eles tomam o que lhes dou:mas toco eu ainda a sua alma?Há um abismo entre o dar e o receber;e o mais pequeno abismo é o último a transpor.
Cresce uma fome da minha beleza;gostaria de fazer mal àqueles a quem alumio,gostaria de roubar aqueles a quem dou - a tal ponto tenho fome de maldade.
Tal vingança imagina a minha abundância:tal perfídia jorra da minha solidão.
A minha ventura de dar morreu com o dar,a minha virtude cansou-se de si mesma com a sua profusão!
Quem sempre dá,corre o risco de perder o pudor;quem sempre reparte,as mãos e o coração lhe criam calos de tanto repartir.
Os meus olhos já não choram diante do pudor dos que pedem;a minha mão fez-se dura demais para o tremor das mãos que encho.
Pra onde foram as lágrimas dos meus olhos e a penugem macia do meu coração?Ó solidão de todos os que dão!Ó silêncio de todos os que iluminam!
Muitos sóis gravitam no espaço deserto:a tudo o que é escuro eles falam com a sua luz - para mim são mudos.
Oh!é esta a inimizade da luz a tudo o que ilumina;impiedosa segue ela as suas rotas.
Iníquo do fundo do coração contra tudo o que dá luz,frio para os outros sóis - assim gravita todo o sol.
Semelhantes a uma tormenta voam os sóis as suas órbitas,é esse o seu gravitar.Obedecem ao seu querer inexorável,é essa a sua frieza.
Oh!só vós,ó escuros,ó nocturnos,só vós é do geque tirais calor da luz! Oh,só vós bebeis leite e refrigério dos úberes da luz!
Ai!há gelo à minha volta,a minha mão queima-se ao contacto do gelo!Ai! há em mim sede que se consome pela vossa sede!
É noite: ai!ter eu de ser a luz! E sede de noite!E solidão!
É noite: agora,como uma fonte,jorra de mim o meu desejo - desejo de fala.
É noite: agora falam mais alto todas as fontes jorrantes. E a minha alma é também uma fonte jorrante.
É noite: agora acordam todas as canções dos amantes. E a minha alma é também a canção de um amante.

Assim cantou Zaratustra.

De F.Nietzsche
in Poemas em Prosa (cinco canções de Zaratustra)



domingo, 17 de maio de 2009

O OBJECTO


Para Tomaz Kim

Há que dizer-se das coisas
o somenos que elas são.
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão.
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e um cão não passa dum cão.

Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão.
Mas se forem de vidraça
e logo forem janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?

E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono.

E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa.

E se o prato for de merda
e o literato for da esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escreveremos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão

Assim se chamam as coisas
pelos nomes que elas são.

De Ary dos Santos


quarta-feira, 13 de maio de 2009

O MORTO


O morto,assim barbeado,
assim vestido,calçado,
está pronto a ser enterrado,
está pronto a ser olvidado,
que ele agora é uma coisa,
é de fora para dentro.
Só aos vivos falta o tempo.
A ele não,que é uma coisa.
Não tem lazer,que fazer,
nem aflição ou dívida.
Qualquer destino lhe serve
à maravilha.
E tanto se lhe daria
ser o defunto na sala,
como carcaça na vala
ou objecto de poesia.
Mas não se esquecem os vivos
de condimentar o morto.
Para que dele não fique
mais que o osso?
De Alexandre O'Neill

domingo, 10 de maio de 2009

VERÃO SOBRE O CORPO


...
Entre os amieiros escondíamos a roupa e nus os olhos caíam sobre a tímida erecção o sexo ladeado já por uma sombra leve e crespa diáfano labirinto dos dedos corríamos pela relva assim os cães se perseguiam se lambem uns aos outros caíamos sobre a boca entre as pernas um rumor de saliva uma áspera doçura pois era o tempo dos medronhos.

Entre a poeira que o rebanho levanta,onde vais,meu ténue rapazinho,o coração de águas estreitas,um pássaro que o costil estrangulou ainda quente por dentro da camisa..

Como se houvesse um incêndio de giestas para atravessar,eu não dormia.
....

excertos de Eugénio de Andrade

terça-feira, 5 de maio de 2009

AVISO AO POETA


Não procures o eterno,
O eterno sol,
Mas procura reter asa e momento.
Não o que volve em pulsação cansada,
Mas o que é nunca em vastidão e nada.

Não procures reter a mão estendida
Mas a que esconde a incógnita penumbra.
Chama as Irmãs da Morte
Como chamasses por Irmãs na Vida.
Tu sabes do Aviso que te envolve.

Tu sabes - ou não sabes? - dessa Grécia
Onde te deram a beber cicuta?
Tu sabes - ou não sabes? - da permuta
Entre o preço das auras e do pó?
Tu sabes o que viste e o que escolheste?
Tu sabes. E andas tonta,como a pomba
No altar do sacrifício a querer voar.
Tu sabes o que queres saber de mais
E conheces a próxima Estação.

Tu sabes tudo. E finges
Como a Esfinge
Que dormes o mistério do Deserto
E a dormir viverás.

Tu sabes o que viste e o que escolheste.
Tu te sabes. E sabes que morreste
E morrias em paz.


De Natércia Freire