domingo, 6 de janeiro de 2008

LUÍS DE CAMÕES


Tinha uma flauta.

Não tinha mais nada mas tinha uma flauta

tinha um órgão no sangue uma fonte de música

tinha uma flauta.


Os outros armavam-se mas ele não:

tinha uma flauta.

Os outros jogavam perdiam ganhavam

tinham Madrid e tinham Lisboa

tinham escravos na Índia mas ele não:

tinha uma flauta.


Tinham navios tinham soldados

tinham palácios e tinham forcas

tinham igrejas e tribunais

mas ele não:

tinha uma flauta.


Só ele Príncipe.

Dormiam rainhas na cama do rei

princesas esperavam no belvedere

Ele tinha uma escrava que morreu no mar.


Morreram escravas as rainhas

morreram escravas as princesas

nenhum teve o seu rei

para nenhuma chegou o Príncipe.

Por isso a única rainha

foi aquela escrava que morreu no mar:

só ela teve

o que tinha uma flauta.


Morreram os reis que tinham impérios

morreram os príncipes que tinham castelos

mas ele não:

tinha uma flauta.


De fora vieram reis

vieram armas de fora

os príncipes entregaram armas

ficou sem armas o povo.

As armas de fora venceram

todas as armas de dentro.

Só não venceram o que não tinha armas:

tinha uma flauta.


E as vozes de fora mandaram

calar as vozes de dentro.

Só não puderam calar aquela flauta.

Vieram juízes e cadeias.

Mas a flauta cantava.

Passaram por todas as fronteiras.

Só não puderam passar

pela fronteira

daquela flauta.


E quando tudo se perdeu

ficou a arma do que não tinha armas:

tinha uma flauta.


Ficou uma flauta que cantava.

E era uma Pátria.


In O CANTO E AS ARMAS

De MANUEL ALEGRE

2 comentários:

Anônimo disse...

Tem uma "poemateca" bem recheada...
Tudo de nota alta.

Codinome Beija-Flor disse...

Se o mundo ouvisse música e sorrise com as crianças, existiria a PAZ, embalada pelo som de uma flauta.
Bjo