terça-feira, 1 de julho de 2008

CANTO PENINSULAR


Estar aqui dói-me. E eu estou aqui

há novecentos anos. Não cresci nem mudei.

Apodreci.

Doem-me as próprias raízes que criei.


Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou

a tempestade.

Muita coisa mudou. Só não mudou

este monstro que tem a minha idade.


E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou

em novecentos anos.

Eu é que não mudei. Neste monstro que sou

só os olhos ainda são humanos.


Quantas vezes gritei e não me ouviram

quantas vezes morri e me deixaram

nos campos de batalha onde depois floriram

flores de pão que do meu sangue se criaram.


Andei de terra em terra

por esse mundo que de certo modo descobri.

E fui soldado contra a minha própria guerra

eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.


Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.

Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.

Eis-me tal como sou há novecentos anos

em que não sei escrever sequer o meu próprio nome.


Falam de mim e dizem: é um herói.

(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)

Mas nunca ninguém disse a razão por que me dói

estar aqui.


De Manuel Alegre,in A Praça da Canção

3 comentários:

Anônimo disse...

Recordava-me, bem, deste poema...
De grande estatura.

mc

vero disse...

Soberbo este poema de Manuel Alegre!!!


Deixo-lhe um beijo ***

Sei que existes disse...

Maravilhoso!
Beijo grande