sábado, 28 de maio de 2011

PORTUGAL

Ó Portugal,se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde,Algarve de cal,
jerico tapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com o vento
testarudo,mas embolado e,afinal,amigo,
se fosses só o sal,o sol,o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanídios,
se fosses só a cegarrega do estio,dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado,a grila no lábio,
o calendário na parede,o emblema na lapela,
ó Portugal,se fosses só três sílabas
de plástico,que era mais barato!
                     *
Doceiras de Amarante,barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana,toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal:questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso,fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes,sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

De Alexandre O'Neill

sábado, 14 de maio de 2011

PRÉMIO CAMÕES

Vai pois,poema,procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob bastante literatura.

Se a escutares,porém,tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então,se puderes,pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás,não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
o teu canto,insensato,será feito
só de melancolia e de despeito.

E de discórdia.E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?

in "Arte Poética" de Manuel António Pina

quarta-feira, 4 de maio de 2011

AS ROSAS

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.

De Eugénio de Andrade
Fotografia de António Dias