quarta-feira, 30 de julho de 2008
SENHORA,PARTEM TAM TRISTES
Senhora,partem tam tristes
meus olhos por vós,meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tam tristes,tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados,tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
de João Roiz de Castel-Branco (Séc. XV)
sábado, 26 de julho de 2008
ELEGIA PARA A MINHA CAMPA
Agora,só,
que é o meu corpo terra confundida
na terra desta Serra minha Mãe;
agora,só,
a minha voz que sempre cantou mal
ao Céu se eleva...
Agora,só,
que no ventre da Serra minha Mãe repousa
meu corpo de Poeta,
de Poeta mudo em vida,por ausente
do ventre maternal os nove meses;
agora,só,claríssima se eleva
a minha voz-louvor,
a minha voz-carícia a minha Mãe,
ao Céu...
Agora,só,
que os meus lábios são terra de onde nascem
as moitas de folhado e de alecrim,
a minha voz saudosa de cantar
se elevará
até aonde o Céu tem cor e fim.
Se elevará a minha voz,perfume
desprendido,suavíssimo,dos matos
que surgiram de mim...
Agora,só,
que sou terra na terra misturada,
que a minha voz é voz de rosmaninho,
eu poderei tratar por tu
a meu irmão Frei Agostinho...
Agora,só,a meu Irmão,
que comigo nasceu naquele Dia
em que ao Céu se entregou,
ébria de Sol e Maresia,
nossa Mãe Serra...
De Sebastião da Gama (1924 - 1952)
quarta-feira, 23 de julho de 2008
O ESPAÇO LIVRE
Desocupado,livre,
sem vestígios,ao sol,
tronco devorado pela luz,
ondulada frescura no dorso,
sem laços,sem raízes,desabitado.
Conheço o tempo
e a demora
lenta,
o vazio da casa na manhã,
a manhã deserta ao sol,
a cegueira da luz tão leve,
o deserto simples,
o nome prolongado e nulo.
Estou
no silêncio,
na habitação do silêncio,
no mar imaginado,
na planura verde sussurrante,
na seara das brisas,
nos adeuses prolongados em ondas desfeitas,
no vazio da terra fresca,
no silêncio sempre novo,
nas vozes sobre o mar,
no sono sobre o mar.
Estou deitado
e alto.
Sou a tranquilidade dos montes,
a lenta curva das baías,
os olhos subterrâneos da água,
a liberdade dispersa do vento,
a claridade de tudo.
Escrevo sobre dunas
silenciosamente.
Oiço o tempo que não passa.
Um século de frescura
inunda-me.
Não esperava habitar esta vasta clareira
límpida.
Não esperava respirar esta brisa de paz,
de liberdade isenta,
de morte desvelada,
de vida renovada.
Abraço todo o espaço na liberdade viva.
De António Ramos Rosa
segunda-feira, 21 de julho de 2008
MÉZINHA DE PESSIMISTAS
Queixas-te que nada te sabe bem?
Continuas,Amigo,co'as mesmas manias?
Barafustas,cospes,injurias --
Paciência e coração se me não contêm.
Dou-te um conselho,Amigo: Vê se um dia
Consegues engolir um sapo bem gordinho,
De repente e sem olhar um instantinho!
Vais ver como te passa essa dispepsia!
De F. Nietzsche
sexta-feira, 18 de julho de 2008
SIEMPRE
Aunque los pasos toquen mil años este sitio,
no borrarán la sangre de los que aquí cayeron.
Y no se extinguirá la hora en que caísteis,
aunque miles de voces crucen este silencio.
La lluvia empapará las piedras de la plaza,
pero no apagará vuestros nombres de fuego.
Mil noches caerán con sus alas oscuras,
sin destruir el dia que esperan estos muertos.
El día que esperamos a lo largo del mundo
tantos hombres,el día final del sufrimiento.
Un día de justicia conquistada en la lucha,
y vosotros,hermanos caídos,en silencio,
estaréis con nosotros en ese vasto día
de la lucha final,en ese día inmenso.
De Pablo Neruda,in Los muertos de la plaza(28 de enero de 1946,Santiago de Chile)
terça-feira, 15 de julho de 2008
OS CÃES DA INFÂNCIA
São os cães da infância os cães dementes
ladrando-me às canelas do passado
cães mordendo-me a vida com os dentes
ferrados no meu sexo atormentado.
Paguei cada minuto do presente
com vergões de amor próprio vergastado
porém só fala quem se não consente
vencido temeroso ou amarrado.
Contra cães uivo. Não me fico assim.
Não tenho pai nem mãe. Nasci de mim
macho e fêmea gerando o desespero.
Lutar é tudo quanto sou capaz.
Não me pari para viver em paz.
Tudo o que sou é menos do que eu quero.
domingo, 13 de julho de 2008
EU ESCREVI UM POEMA TRISTE
Eu escrevi um poema triste
E belo,apenas de sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico,junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!
De Mário Quintana
Ilustração retirada do blog O itinerário do olhar
sábado, 12 de julho de 2008
AMIGOS
Aos meus amigos do mundo virtual
Nas palavras,nos momentos de magia,
de loucura... onde o sentimento
não se afunda,onde o credo da palavra
Amizade,não é uma palavra vã,
é solidariedade transformada em lágrimas,
é sorrisos transformados em flor,
que se colhem na bruma do dia que está a nascer.
Avisto o mar e o meu pensamento
corre naquele mar azul,imaginando
presenças sentidas... nas palavras,
na vontade de dizer:
Mesmo no mundo virtual,
a palavra Amizade tem sentido
tem beleza,tem profundidade.
De Otília Martel,in "Menina Marota um desnudar da alma"
quinta-feira, 10 de julho de 2008
SOBRE OUTROS LÁBIOS
Eu crescia para o verão.
Para a água
antiquíssima da cal
crescia violento e nu.
Podiam ver-me crescer
rente ao vento,
podiam ver-me em flor,
exasperado e puro.
À beira do silêncio,
eu crescia para o ardor
calcinado dos cardos
e da sede.
Morre-se agora
entre contínuas chuvas,
os lábios só lembrados
de um verão sobre outros lábios.
De Eugénio de Andrade
Imagem retirada do blog A ESSÊNCIA DAS COISAS
segunda-feira, 7 de julho de 2008
O DIREITO - TORTO
Da comédia musical,com o título acima,a 1ª canção de "Zeferino":
Quem quiser ser deputado
N'este tempo tão bicudo,
Há-de mentir descarado
Prometter arranjar tudo!
E fingir-se um sabichão.
D'outrem decorar discurso,
P'ra mostrar erudição
Sendo aliás um grande urso!
E se acaso o não puder
Lá no caco introduzir
Dê apoiados a valer
E á maioria va-se unir!
Peça lá p'ra os da panella
Aos ministros um rebuçado,
E conte sempre co'aquella,
Sim senhor,sê deputado!
E o doutor em medicina
Que tiver fraca cachola,
Off'reça gratis vacina
Na maré da variola!
Falle mal dos seus collegas,
Proclame-os brutos chapados,
Diga que - corujas cegas,
Só na morte são formados!
Quanto ao doutor em direito,
Pouco tem esse a fazer,
Chicanando tudo a eito,
Não tem mais que defender!
Chame ao reu - um inculpado,
Sendo acaso ... generoso;
Ao innocente malvado,
Se não passa d'um tinhoso!
De Gaudêncio Carneiro,Lisboa 1878
domingo, 6 de julho de 2008
ESTOU VIVO E ESCREVO SOL
ao Ruy Belo
Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida
Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
De António Ramos Rosa,in ESTOU VIVO ESCREVO SOL
sexta-feira, 4 de julho de 2008
UMA VIDA DE CÃO
Não
não é poesia caixa de música
ou a poesia piolho místico enterrado no sebo destes dias
ou qualquer outra
que podem dissolver a tua alma
tão problemática
no vinho da beatitude
Ah
o "mistério" da poesia a poesia
técnica da confusão
a capelista poética e os primeiros fregueses
ainda a medo ainda receosos
de te pedirem a Dor em alfinetes que não tenhas
logo ali à mão
E quando dizes "Poesia" eu tenho nojo
aquele nojo violento que me dá
o olhar furtivo a atenção desatenta
dos que se demoram nos lavabos nas salas dos cinemas
de mãos distraídas procurando
a solução da noite
Instalaram-me em ti
a mesma contracção suspeita
a mesma hipocrisia o mesmo sobressalto
a mesma curva obscena
que o olhar descreve
goza
e disfarça
Quando dizes "Poesia" dizes medo
dizes família tradição classe
e a vida de cão que te esperava
e que é hoje a tua vida a tua "trancendente"
vida de cão
....
Excerto de Alexanre O'Neill
terça-feira, 1 de julho de 2008
CANTO PENINSULAR
Estar aqui dói-me. E eu estou aqui
há novecentos anos. Não cresci nem mudei.
Apodreci.
Doem-me as próprias raízes que criei.
Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou
a tempestade.
Muita coisa mudou. Só não mudou
este monstro que tem a minha idade.
E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou
em novecentos anos.
Eu é que não mudei. Neste monstro que sou
só os olhos ainda são humanos.
Quantas vezes gritei e não me ouviram
quantas vezes morri e me deixaram
nos campos de batalha onde depois floriram
flores de pão que do meu sangue se criaram.
Andei de terra em terra
por esse mundo que de certo modo descobri.
E fui soldado contra a minha própria guerra
eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.
Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal como sou há novecentos anos
em que não sei escrever sequer o meu próprio nome.
Falam de mim e dizem: é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)
Mas nunca ninguém disse a razão por que me dói
estar aqui.
De Manuel Alegre,in A Praça da Canção
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