domingo, 29 de março de 2009

A BRUXA


Com sete lagartos mortos

sete vasilhas de enxofre

sete lacraus sete corvos

sete anéis de pedra negra

sete cabras sem pescoço

sete bacias de sangue

sete agulhas de veneno

sete gatos sete figas

sete cruzes sete salgas

sete luas sete rezas

sete fogos para as almas

sete candeias acesas

em sete torcidas de algas.


De Ary dos Santos,in "Tempo da Lenda das Amendoeiras"(1964)

quarta-feira, 25 de março de 2009

OS ENJEITADOS


Carregando os caixões nos magros ombros

Enterrando na polpa das montanhas

Os tornozelos de aço,

Rasgando no ar fino agudas frestas

Caminham lentamente os enjeitados.


Escasseia-lhes emprego nas florestas

Nas bancas da cidade revoluta

E transportam a morte com cuidado.


Os pais ocultam-se em locais limites.

Levam aos ombros mitos sem limites

Com seus nomes em cera desenhados.


Ao pôr do sol escutaram a chamada

Que vinha sempre errada.

E sentaram-se à mesa num lugar

Entre desconhecidos e estrangeiros.


Vinha um sopro de lar

De uma língua de tempos derradeiros.


Os silêncios depois cavaram vales.

As margens sepultaram os seus leitos.

Escalaram as montanhas sem vontade.

Fabricaram metralha no seu peito.

Pediram filhos a planetas mortos.

Dormiram com saudades mutiladas.


Beberam sonhos pelo mesmo copo.

Fugiram das cidades em partilha.

Deram as mãos.Sentaram-se a chorar

No choro de uma ilha.


Chove-lhes fogo em dias de criança.

Chove-lhes fel em dias ensombrados.

Jovem povo sem esperança

Desde o ventre da mãe,os enjeitados.


Ocupados no mapa das viagens,

Exaltados no tempo de ir a Marte.

Todos heróis,políticos e pajens

De Herodes e Medeia,

Abrem os pais as veias.


No ar,jorra em cadeias de cadência,

O sangue colectivo de uma ausência.


De Natércia Freire

Fotografia de autor desconhecido:Roda dos Expostos ou Enjeitados,no Poço de Borratém

domingo, 22 de março de 2009

OPERALHO


Ele chegou muito cansado do trabalho
Tomou sopa de pacote e comeu alho
Viu novela e jogou cinza no soalho
E foi tentar algum por fora no baralho

A vizinha chamou ele de bandalho
Num golpe baixo: -deu-lhe um chute no bugalho
Transformou a roupa dela num retalho
Navalhou no rosto dela um belo talho

O delega do lugar,doutor Bicalho
Ouviu a queixa e mandou descer o malho
Mas quebrou o braço dele feito um galho
Saiu da cana parecendo um espantalho

Foi pela rua enxugando orvalho
Era motivo de chacota e de avacalho
Sentindo frio mas não tinha um agasalho
Perdendo sangue concluiu: eu nada valho

De Gerson Deslandes

quarta-feira, 18 de março de 2009

SER FELIZ


Posso ter defeitos,viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não esqueço de que a minha vida é a maior empresa do mundo.
E que posso evitar que ela vá a falência.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver
apesar de todos os desafios,incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e
se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si,mas ser capaz de encontrar
um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um "não".
É ter segurança para receber uma crítica,mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas,um dia vou construir um castelo...
De Fernando Pessoa
Um contributo de MC

quinta-feira, 12 de março de 2009

O CIO DA POESIA


É no verão das palavras
no suor
das coisasamassadas
no calor
de coxas esculturais e bem-amadas
que o poeta traz o cesto das entradas.

Um cabaz de morangos um almude
de vinho novo e grave um alaúde
de arcanjos e marujos profetas;
- é sempre o quarto da saúde
quando se acende a luz dos poetas.

Quando ela nasce tudo o mais se cala
navios nos pinhais pinheiros nas florestas
filhos no sémen dos pais aromas dentro das giestas;
- só quando o cio é demais
é que o parto tem arestas

Quando a sibila das cores
abre as pernas às palavras
os poetas têm dores
como crianças que ladram.
E fazem sulcos na carne
golpes dentro da ternura
até chegarem ao cerne
da primavera mais dura.

Então acendem-se os poemas
feitos de poesia pura.

De Ary dos Santos
Pintura de Dali

segunda-feira, 9 de março de 2009

CORPO


É quando a chuva cai,é quando
olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos
vissem esse brilho e o dissessem
a quem passa na rua,e cantassem.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.
De Eugénio de Andrade
Pintura de Bonfanti Maurizio(2007)

quinta-feira, 5 de março de 2009

LEGO


Está tudo conformado

ao triste proprietário.

Mecânicas ovelhas,

na erva de plástico,

têm pastor de pilhas

e cão pré-fabricado.

Flores marginam esse

às peças-soltas do prado.

Eléctricas abelhas,

obreiras sem contrato,

daquele herbário extraem

um mel supermercado.

A malhada,no estábulo,

quase manga de alpaca

(é A VACA,sabias?),

dá leite engarrafado.

No céu (para colorir)

a nuvem (pontual),

aguarda a vez de ser

chovida no nabal,

enquanto o Sol dardeja

na eira proverbial.

Já tudo afeiçoado

ao bom do proprietário

(ervas,bichos,moral),

ele conta com os seus

e espera sempre em Deus.


("- Deste corda ao pardal?")


De Alexanre O'Neill

segunda-feira, 2 de março de 2009

AS VOLTAS DA POESIA


Borborigmo a expensas da dobrada.

Para uns,é a alma alcanceada:

para outros,quilo tão ronceiro

que lhes dá resmoneio o dia inteiro,

a conversa visceral fiada

que os versos são,primeiro.


Em qualquer dos casos,venham mas é versos,

bem tirados,acabados,tesos,

que a dobrada,essa,se por lá traquina,

é para coisa que se veja,chula ou fina.


De Alexandre O'Neill