segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Máscara mortuária de Graciliano Ramos

Feito só,na máscara paterna,
Sua máscara tosca,de acre-doce
Feição,sua máscara austerizou-se
Numa preclara decisão eterna.

Feito só,feito pó,desencantou-se
Nele o último arcanjo,a chama eterna
Da paixão em que sempre se queimou
Seu duro corpo que ora longe inverna.

Feito pó,feito pólen,feito fibra
Feito pedra,feito o que é morto e vibra
Sua máscara enxuta de homem forte.

Isto revela em seu silêncio à escuta:
Numa severa afirmação de luta,
Uma impassível negação de morte.

De Vinicius de Moraes

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A FORÇA DO HÁLITO

A força do hálito é como o que tem que ser.
E o que tem que ser tem muita força.

Vai(ou vem) um sujeito,abre a boca e eis que a gente,
que no fundo é sempre a mesma,
desmonta a tenda e vai halitar-se para outro lado,
que no fundo é sempre o mesmo.

Sovacos pompeando vinagres e bafios
não são nada - bah.... - em comparação
com certos hálitos que até parece que sobem do coração.

      Ai onde transpira agora
      o bom sovaco de outrora!

Virilhas colaborando com parêntesis ou cedilhas
são autênticas (e sem hálito!) maravilhas.
Quando muito alguns pingos nos refegos,nas braguilhas,
amoniacal bafor que suporta sem dor
aquele que está ao rés de tal teor.

Mas o mau hálito é pior que a palavra,
sobretudo se não for da tua lavra.

Da malvada,da cárie ou,meudeus,do infinito,
o mau hálito é sempre na narina,
como o baudelaireano,desesperado grito
da "charogne" que apodrecer não queria...

De Alexandre O'Neill

sábado, 11 de junho de 2011

SOBRE O CAMINHO

Nada.

Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila
         dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não colecciones dejectos o teu destino és tu.

Despe-te
não há outro caminho.

De Eugénio de Andrade

sábado, 28 de maio de 2011

PORTUGAL

Ó Portugal,se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde,Algarve de cal,
jerico tapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com o vento
testarudo,mas embolado e,afinal,amigo,
se fosses só o sal,o sol,o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanídios,
se fosses só a cegarrega do estio,dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado,a grila no lábio,
o calendário na parede,o emblema na lapela,
ó Portugal,se fosses só três sílabas
de plástico,que era mais barato!
                     *
Doceiras de Amarante,barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana,toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal:questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso,fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes,sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

De Alexandre O'Neill

sábado, 14 de maio de 2011

PRÉMIO CAMÕES

Vai pois,poema,procura
a voz literal
que desocultamente fala
sob bastante literatura.

Se a escutares,porém,tapa os ouvidos,
porque pela primeira vez estás sozinho.
Regressa então,se puderes,pelo caminho
das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás,não olhes para trás,
ou jamais te perderás;
o teu canto,insensato,será feito
só de melancolia e de despeito.

E de discórdia.E todavia
sob tanto passado insepulto
o que encontraste senão tumulto,
senão de novo ressentimento e ironia?

in "Arte Poética" de Manuel António Pina

quarta-feira, 4 de maio de 2011

AS ROSAS

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.

De Eugénio de Andrade
Fotografia de António Dias

segunda-feira, 25 de abril de 2011

45 ANOS DEPOIS

Quarenta e cinco anos depois
o mundo deu muitas voltas
atravessámos muitos sóis
e deixámos pontas soltas
gostámos
sofremos
combatemos
resistimos e ganhámos
vale a pena viver
e em dose dupla comemorar
esta nossa data de liberdade
para ti
minha querida
rosas do campo com verdade.
25 de Abril de 1966

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A MORTE DE CALAR

As viagens que sou prenderam-se em redomas
Ao corpo das palavras.À morte de calar.
Do alfabeto meu ignoro as cristalinas
Formas de aladas letras nestes versos finais.
São fantasmas de sol.São fantasmas de sede
Que chegam alta noite para nenhum lugar.

Decifro nas entranhas das trevas migradoras
O solstício da vida além da morte clara.
Mas quem me vem cegar,com setas voadoras,
Nega-me agora a paz das secretas paisagens.

Meus Irmãos de astronaves,guiadas por um morto,
Que me esperam e estão,que me cantam e falam.
Que na vazia Cruz crucificam meu corpo
E abandonam a flor,mesmo a meio da sala.
À janela rasgada,para as cinzentas águas,
Encostam-me,sem olhos,e deixam-me ficar.

       Não tenho nada mais a escrever sobre as ondas.
       E,mesmo que tivesse,ninguém leria o Mar.

De Natércia Freire

segunda-feira, 21 de março de 2011

DESDE A AURORA

Como um sol de polpa escura
para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,

entre os veios do sono
e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:

vai entrar o vento ou o violento
aroma duma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:

é tempo de colher:a noite
iluminou-se bago a bago: vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.

Sou eu,desde a aurora,
eu - a terra - que te procuro.

De Eugénio de Andrade

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

TRÊS CARNEIROS DO TEJO

Nasce na serra de Albarracim,em Espanha,
entra-nos em casa pelo Ródão,
arremeda-nos a sua galadela,
depois acalma,vai deitando corpo,
e aqui,já todo ancho,o atravesso
diariamente,eu,o ribeirinho
que traz a mão na estiva de palavras
no outro lado e a cabeça algures.

Cada um com sua nuvem rente à boca,
que em alguns é o cúmulo da prosápia,
das leiras do sono nós todos arrancamos
pra Lisboa,a tão estremecida,
e ao barbeirinho opomos catadura
de quem está zangado com a vida.


E estamos.


                               *


Dragado de conversas,Tejo,darias mais calado
à nossa companhia,
mas calados só eu e a rapariga
que passou a noite a vadrulhar,
deu um pulo à tia e volta prà cidade
já quase na pele de outra pessoa,
retocado o bâton,aproveitada a olheira,
reposto o seio no lugar,tão sobranceiro!


É de dia caixeira,aposto eu.
Não vale que tu viste,digo eu.


                                  *


Ó Tejo nunca inaugurado,nesta praça
devia haver comércio,esplanadas,mesas
onde eu assentaria o cotovelo e,a cafés,
diria,versejando,quem não és.


Com as Dez Odes do Dr.Armindo,
que,aliás,são um poema lindo,
ó Tejo vaidosão tu transbordaste,
tu não te contiveste,tu não te aguentaste!
Mas eu,Tejo continuado,nesta praça
minist'rial que mais te posso dar,
a ti que vens de Albarracim,meu espanhol,
que passaste Almourol,
que passaste Pereira Gomes e Redol,
senão a frase sim ou não ouvida,
com este meu ouvido,com esta minha vida,
a um rapaz que,sem malícia,veio,
da sombra de sei lá de que sobreiro,
para dar em alguém,cá na cidade:


Ser da polícia,
dá cantina,barbeiro,autoridade.

De Alexandre O'Neill

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

TRÊS ADEREÇOS RECEBIDOS COMO HERANÇA

A Peliça
Catarina da Rússia,minha prima
pela fronteira travessa,
deixou-me,além do gosto pela esgrima
com a moral avessa,
um casaco de marta sibilina
que desabafa muita viscondessa.

O Chicote
Meu tetravô polaco que era conde
de Nãossesabedonde
legou-me em testamento
uma lança de vento
e um chicote cossaco

uma lança que lanço quando invento
um galope que páro quando estaco.

O Espelho
Meu padrinho de crisma,Dom Quixote,
que morreu ainda eu era criança,
deixou-me em usufruto
Sancho Pança.

De Ary dos Santos