sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

APAGÃO MUNDIAL


Cinco minutos de guerra

Cumprir o apagão mundial

Para podermos viver nesta Terra

Contra

Todas as vontades da moeda imperial.

Truz!Truz!

Apaga a luz!

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O POEMA ORIGINAL


Original é o poeta

que se origina a si mesmo

que numa sílaba é seta

noutra pasmo ou cataclismo

o que se atira ao poema

como se fosse ao abismo

e faz um filho às palavras

na cama do romantismo.

Original é o poeta

capaz de escrever em sismo.


Original é o poeta

de origem clara e comum

que sendo de toda a parte

não é de lugar algum.

O que gera a própria arte

na força de ser só um

por todos a quem a sorte

faz devorar em jejum.

Original é o poeta

que de todos for só um.


Original é o poeta

expulso do paraíso

por saber compreender

o que é o choro e o riso;

aquele que desce à rua

bebe copos quebra nozes

e ferra em quem tem juízo

versos brancos e ferozes.

Original é o poeta

que é gato de sete vozes.


Original é o poeta

que chega ao despudor

de escrever todos os dias

como se fizesse amor.


Esse que despe a poesia

como se fosse mulher

e nela emprenha a alegria

de ser um homem qualquer.


De Ary dos Santos

Imagem retirada de www.guia.heu.nona.br

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

E LEVANTAM-SE AS PESSOAS


E levantam-se as pessoas

Como quem se adormecesse.

Preparam-se para o sono

De uma vigília nas ruas

Nas casas e nos empregos.


E naufragam e sufocam

Nas avenidas do Tempo.

Conversam como quem fecha

Creches gaiolas enterros

- Crianças aves e mortos.


Nos sorrisos e nos risos

Na lucidez dos reflexos

Pensam os tristes dos homens

Ganhar os dias correndo.

Mas são retidos nas sombras.

São amarrados ao vento.

São sacudidos em potros

E forcas de entendimento.

Eles que são cabeleiras,

Nas chuvas de outros intentos

Nos rios e nas goteiras.


E levantam-se as pessoas

Como quem fosse viver.


Dá o Sol por sobre o Dia

Faz o dia apodrecer.


(Maduro quer dizer Morte

Com toda a sabedoria)


Deitam-se então as pessoas

Para a morte de outro dia


De Natércia Freire

Imagem retirada de lunatica.blogs.sapo.pt

domingo, 24 de fevereiro de 2008

HIMNO Y REGRESSO (1939)


Patria,mi patria,vuelvo hacia ti la sangre.

Pero te pido,como a la madre el niño

lleno de llanto.

Acoge

esta guitarra ciega

y esta frente perdida.

Salí a encontrarte hijos por la tierra,

salí a cuidar caídos con tu nombre de nieve,

salí a hacer una casa con tu madera pura,

salí a llevar tu estrella a los héroes heridos.


Ahora quiero dormir en tu substancia.

Dame tu clara noche de penetrantes cuerdas,

tu noche de navío,tu estatura estrellada.


Patria mía:quiero mudar de sombra.

Patria mía:quiero cambiar de rosa.

Quiero poner mi brazo en tu cintura exigua

y sentarme en tu piedras por el mar calcinadas,

a detener el trigo y mirarlo por dentro.

Voy a escoger la flora delgada del nitrato,

voy a hilar el estambre glacial de la campana,

y mirando tu ilustre y solitaria espuma

un ramo litoral tejeré a tu belleza.


Patria,mi patria

toda rodeada de agua combatiente

y nieve combatida,

en ti se junta el águila el azufre,

y en tu antártica mano de armiño y de zafiro

una gota de pura luz humana

brilla encendiendo el enemigo cielo.


Guarda tu luz,oh patria!,mantén

tu dura espiga de esperanza en medio

del ciego aire temible.

En tu remota tierra ha caído toda esta luz difícil,

este destino de los hombres,

que te hace defender una flor misteriosa

sola,en la inmensidad de América dormida.


De PABLO NERUDA

in CANTO GENERALE DE CHILE

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

APRENDIZAGEM DA POESIA


Durou muitos anos,aquele verão.

Crescíamos sem pressa com o trigo

e as abelhas. Com o sol

corríamos para a água,à noite

num verso de Shakespeare ou

na nossa boca uma estrela dançava.

Aprendíamos a amar,aprendíamos

a morrer. A todos os sentidos

pedíamos para escutar o rumor,

não do mundo,que ninguém abarca,

apenas da brancura duma folha

e outra folha ainda de papel.


De Eugénio de Andrade

Tela de Van Gogh

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O ALBATRÓS


Que maravilha! Voa ele ainda?

Continua a subir,e co'as asas paradas!

Que é que o levanta e aguenta?

Qual é o seu fito,o seu curso,as suas rédeas?


Voou ao máximo - agora é o próprio céu

Que ergue ao alto o que voa triunfante:

Fica parado a pairar,

Esquecendo o triunfo e o que triunfa.


Como a estrela e a eternidade,

Vive agora em alturas de que a vida foge,

Com dó mesmo da inveja:

E alto voou mesmo quem só o vê pairar!


Ó pássaro Albatrós!

Um eterno desejo me impele pra as alturas.

Pensei em ti: e então correu

Lágrima após lágrima, - sim,amo-te!


De F.Nietzsche

sábado, 16 de fevereiro de 2008

A ÚLTIMA VIAGEM DE JAYME OVALLE


OVALLE não queria a Morte

Mas era dele tão querida

Que o amor da Morte foi mais forte

Que o amor de Ovalle à vida.


E foi assim que a Morte,um dia

Levou-o em bela carruagem

A viajar - ah,que alegria!

Ovalle sempre adora viagem.


Foram por montes e por vales

E tanto a Morte se aprazia

Que fosse o mundo só de Ovalles

E nunca mais ninguém morria.


A cada vez que a Morte,a sério

Com cicerônica prestança

Mostrava a Ovalle um cemitério

Ele apontava uma criança.


A Morte,em Londres e Paris

Levou-o à forca e à guilhotina

Porém em Roma,Ovalle quis

Tomar a sua cangebrina.


Mostrou-lhe a Morte as catacumbas

E suas ósseas prateleiras

Mas riu-se muito,tais zabumbas

Fazia Ovalle nas caveiras.


Mais tarde,Ovalle satisfeito

Declara à Morte,ambos de porre:

- Quero enterrar-me,que é um direito

Inalienável de quem morre!


Custou-lhe esforço sobre-humano

Chegar à última morada

De vez que a morte,a todo o pano

Queria dar uma esticada.


Diz o guardião do campo-santo

Que noite alta,ainda se ouvia

A voz da Morte,um tanto ou quanto

Que ria,ria,ria,ria...



De Vinicius de Moraes

Imagem:"Morte de Inês de Castro" de Columbano Bordalo Pinheiro

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

LIMITES DA HUMANIDADE



O poema anterior saiu sem identificação e sem imagens.

É um poema de J.W.GOETHE.

LIMITES DA HUMANIDADE

Quando o antiquíssimo
Pai sagrado
Com mão impassível
De nuvens troantes
Semeia sobre a Terra
Relâmpagos de bênção,
Beijo eu a última
Fímbria da sua túnica,
Temor filial
Fiel no peito.

Pois com Deuses
Não deve medir-se
Homem nenhum!
Ergue-se ele ao alto
Até tocar
Co'a cabeça os astros,
Nenhures se prendem
Os pés incertos,
E com ele brincam
Nuvens e ventos.

E se está com ossos
De rijo tutano
Sobre a Terra firme,
Inabalável,
Nem sequer chega
A poder comparar-se
Com o carvalho
Ou com a vide.

O que é que distingue
Os Deuses dos homens?
Que muitas vagas
Ante aqueles vagueiam,
Eterna torrente:
A nós ergue-nos a vaga,
Traga-nos a vaga,
E vamos pra o fundo.

Um estreito anel
Nos limita a vida,
E muitas gerações
Se alinham constantes
À cadeia infinda
Do seu existir.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

POEMA COM h PEQUENO


Cantarei o homem criador crucificado

em suas máquinas. Caçador caçado

por suas armas. Tocador tocado

por suas harpas.

Cantarei o homem vezes homem até ao infinito.

Cantarei o homem: esse mortal - imortal

meu amigo - inimigo. Meu irmão.


Cantarei o homem que transforma tudo

e tão difìcilmente se transforma.

Ele que se escreve com h pequeno

em todas as coisas que são grandes.


Cantarei o homem no plural.

Ele que é tão singular

tão impossível de ser outro

senão ele próprio: o homem.


Cantarei o homem vezes homem até à massa.

Cantarei a massa vezes massa até ao homem.


Porque não sei doutra guerra. Não sei doutra paz.

Não sei doutro poema que não seja o homem.


De MANUEL ALEGRE,in O CANTO E AS ARMAS

Poema seleccionado para representar Portugal na 10ª edição do festival cultural Printemps des Poètes,a realizar em Lyon,a 4 e 5 de Março(revista VISÃO)

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

CORAGEM,AMIGO YORIK!...


Coragem,amigo Yorik!

E quando o teu pensamento te tortura,

como agora,

não lhe chames - "Deus"! Porque,longe disso,

ele não passa do teu próprio filho,

a tua carne e o teu sangue;

o que então te aflige e te atormenta

é só o teu garoto,esse patife!

- Ora experimenta dar-lhe uns bons açoites!


Em suma,amigo Yorik! Deixa a sombria

filosofia - e pra te segredar

aqui ao ouvido ainda uma sentença

à laia de mèzinha caseira

- a minha receita contra tal spleen -:

"Quem ama o seu "Deus",que o discipline".


De F.Nietzsche

domingo, 3 de fevereiro de 2008

PEDRA ATIRADA


Quando eu tiver a certeza

De que nada foi verdade,

E que dentro da tristeza

Da minha serenidade

Nunca o sonho foi beleza,

Nem a Poesia certeza,

Nem o Amor foi verdade...


Quando eu souber,bem a fundo,

Que era cinza a minha pele;

Que ninguém me viu no mundo

E que não passei por ele...


Quando,de brumas envolta,

Só vir casarões vazios,

E só as vozes,à solta,

Me despertem arrepios...


Quando o frio me despir

As ilusões que julguei,

As vitórias que criei,

Os movimentos sagrados,

E já nada me entristeça...

E nem na sombra,em retratos,

Eu sequer me reconheça

- Se nem retratos tirei! -

Nos olhos me apagarei.


Quando eu tiver a certeza

De que nada foi verdade:

Nem os Céus nem a Beleza,

Nem a minha imensidade,

Nem os braços que estendi,

Nem os espaços que viajei,

Nem ilhas que nunca vi,

Mas chão onde descansei,

Nem noites de danças lentas

Em que me vinham buscar

- Madrugadas nevoentas

De ir com Eles para o mar...


Nem esse gosto impreciso,

Ténue gosto de salgado,

Que há-de haver no Paraíso

Quando está longe o pecado...


Quando eu tiver a certeza

De que nada foi Verdade,

Pedra me sinta atirada

Entre as coisas sem idade.


De NATÉRCIA FREIRE