domingo, 28 de setembro de 2008
LUGARES DO OUTONO
Outono,labirinto de silvas,
de sílabas,digo: pupila lenta,
rio de inumeráveis águas
e de amieiros onde canta
a derradeira luz das cigarras,
de vidro ainda,e leve, e branca.
De Eugénio de Andrade
Fotografia retirada de lua.weblog.pt
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
COM CINCO LETRAS DE SANGUE
De súbito três tiros na memória.
Apagaram-se se luzes. Noite. Noite.
De súbito três tiros nas palavras
um poeta calou-se apagou-se a canção.
De súbito um poema foi bombardeado
um poeta fechou-se nas vogais
cercado por consoantes que talvez
caminhassem cantando para um verso.
Eram granadas? Eram sílabas de fogo?
E de súbito a guerra. Noite. Noite. E um poeta
com cinco letras escreveu no chão: PORQUÊ?
Com cinco letras do seu próprio sangue.
De Manuel Alegre,in A Praça da Canção
domingo, 21 de setembro de 2008
IMAGINANDO
Nesses dias deitados
Eu pessoalmente gostaria
De dizer a você
O quanto realmente se chora na noite
O quanto se ri de dia da própria desgraça de amar
Não reclamo de nada
Estou até muito bem assim
Imaginando-te sempre doce,sempre boa
Sempre emaranhada
Nos diversos cabelos do meu corpo
Sei muito bem que isso é besteira
Sei muito bem o quanto me abandonas
A cada dia. Mas por isso mesmo
Sei muito bem que nunca mais
É sinónimo de sempre
E imaginar-te comigo é te ter ainda um pouco
Pensar em teu corpo é te amar novamente
Tanto que fico até rouco,como você sabe quando.
Ainda tomo sorvete de coco com você - peço duas
E vou para o carro vazio! O sorveteiro ri!
Não faz mal se o teu derrete no banco
Você não sabia mesmo tomar sorvete sem lambuzar
Vê como já estou imaginando? Mas é assim
Que eu gosto de ficar: imaginando!
Você e tudo o mais que compõe você
Como um samba feliz do Cartola
Eu tenho que continuar pensando em você
A gente só fica mesmo sozinho
Quando não tem ninguém no coração.
De Gerson Deslandes
Fotografia retirada de olhares.aeiou.pt
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
MÃE
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas,que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti - não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio.
Ou és outra,ou me enganas,ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos,diz que sim!
Diz que me vês ainda,que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
De Miguel Torga (1907 - 1995)
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
FLÁVIA
Dez anos de idade
Sonhos de infância em apogeu
Criança linda de verdade
Que a mão do Homem adormeceu.
Vinte anos agora tem,
Seu olhar impávido e sereno
Dá força sua Mãe
Que a cuida com tanto zelo.
Um verdadeiro bebé grande
É esta menina imaculada,
Por isso há muita gente que reclame
Pela justiça atrasada.
O ralo dessa piscina
Não sugou só seus cabelos,
Sugou-lhe também a vida
Tudo o que há de mais belo.
Uma vergonha verdadeira,
É de bradar aos céus tanta lentidão
Porque na justiça brasileira
Dorme a voz da razão.
De Isabel Filipe,disponibilizado por Menina Marota
Selo do blogue ADesenhar
domingo, 14 de setembro de 2008
À BAILARINA
Ela dança com todos os anos
desperta e serena
e sem perguntas sorri
ela caminha
ela vive e respira
comigo convosco
em qualquer parte do mundo
nasceu na infância e acordou hoje
Se escrevo este poema
onde ela dança
é tão-só porque vi hoje o mar
e corri na areia a seu lado
Se existe um pouco de ar
ou todo o ar
e nele apenas somos sem disfarce
para sermos quem somos
é porque pisei a praia dura e fresca
e rolámos como as ondas na areia
Ela dança e vive
na claridade do amigo
no espaço da cozinha
na luz do mosaico
na madeira brilhante
ao sol que entrou em casa
A flor estava na mesa
e eu vi a flor
e vi o raio de sol
e as suas pernas de bailarina
ao longo do corredor
Hoje ainda é dia
diz o seu rosto
Amanhã é dia
diz o seu andar
Um dia diferente
o que há-de vir
Amanhã será diferente
Ó bailarina minha
dou-te esta rosa hoje
por ser o dia de hoje
e por tu existires
tão amanhã em mim
De António Ramos Rosa
Pintura de Degas
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
* * *
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
De Alexandre O'Neill
domingo, 7 de setembro de 2008
O DIREITO-TORTO
Um homeopatha sou,
Tenho essa satisfação!
Se me chamam logo vou
Co'esta botica na mão!
Oh!que grande descoberta,
Pasmosa de raridade!
Co'ella toda a gente acerta
A curar a humanidade!
E tambem a enriquecer
Sem as aulas ter cursado!
Basta n'um guia mexer,
Está-se logo formado!
E formado duplamente
Em pharmacia e medicina!
Quem quizer que exp'rimente,
De seu terá uma mina!
Medico de fresca data,
Basta n'um guia mexer,
Eil-o tambem homeopatha,
E homeopatha a valer!
E nenhum tempo é preciso
Para se obter clientella:
Nos labios basta um sorriso,
E a taboleta á janella!
E se algum doente estica,
Ninguem n'isso inda pensou:
Com consultorio e botica,
Um homeopatha eu sou!
De Gaudêncio Carneiro,Lisboa,1878
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
A DENTADURA
(aos Exmos. Sisos Pro-Tese)
As palavras concretas
são autopoetas
autorroedoras
autodigestivas
mas não auto-sangue
mas não autovivas.
As palavras setas
são como os poetas
velobicicletas
que pedalampasmam
que pedalotentam
pelas viasvidas
que pedalamdentam
que pedalam asnam
comendo violetas
mastigando urtigas.
As palavras poetas
dispostas aos ramos
de rosas selectas
nas antologias.
As palavras ostras
da literatura
num colar de pérolas
de puericultura.
As palavras nastros
as palavras lastros
que fazem dos astros
uma dentadura.
De Ary dos Santos
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
IMPROVISO
"Uma rosa depois da neve,
Não sei que fazer
de uma rosa no inverno.
Se não for para arder,
ser rosa no inverno de que serve?"
EUGÉNIO DE ANDRADE
A rosa é sempre a mensagem,
O fogo é sempre a viagem
Dos braços abrasados na miragem
Do calor de ocultos véus
Poeta!Poeta em astros
De altos lumes
De altos mastros
Lembranças de lumes castos
E de perfumadas bodas
Em teatros saudosos
Eternos bailes de roda...
Na sonhada perfeição
Dos leitos que a noite embala
Nos seus véus
De ocultos sagrados rios
Rios de amor ocultados
Na paixão dos bem-amados
Água,Luz.Murmúrio a dois,
No olhar adormecido.
Luz de um céu imaginado
No presente,no passado
Água,voz,canção de sóis.
De Natércia Freire
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