quarta-feira, 29 de julho de 2009

MEU CAMARADA E AMIGO


Revejo tudo e redigo
meu Camarada e Amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.
É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.
Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.
Calculo até os moinhos
puxados a óleo e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
---mas um poeta só fala
por sofrimento total!
Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Aonde não me revejo
é o que eu sofro o meu país.
De Ary dos Santos

domingo, 26 de julho de 2009

O MAR


O mar. O mar novamente à minha porta.
Vi-o pela primeira vez nos olhos
de minha mãe,onda após onda,
perfeito e calmo depois,
contra as falésias,já sem bridas.
Com ele nos braços,quanta,
quanta noite dormira,
ou ficara acordado ouvindo
seu coração de vidro bater no escuro,
até a estrela do pastor
atravessar a noite talhada a pique
sobre o meu peito.
Este mar,que de tão longe me chama,
que levou na ressaca,além dos meus navios?
De Eugénio de Andrade
Fotografia de JR

quarta-feira, 22 de julho de 2009

SAUDAÇÃO DO COSMONAUTA


- Olá,Mãe!
Daqui,deste areal tranquilo,que é a lua,
te mando o beijo mais longo e mais profundo,
até agora concebido,
por homens deste Mundo!
Que te encontres bem,
junto à lareira,
a desfiar o rosário da tua Cruz,
ou a dizer os versos que te oferecia,
quando era pequenino,
do tamanho de uma noz...
Hoje a minha poesia
é mais distante,e mais verdadeira,
porque imprime à minha voz
o mais sentido hino
à Fé da Humanidade.
Um poeta com os pés firmes na lua,
tem a obrigação de ver as coisas
com mais objectividade
e com uma coragem só igual à tua.
Os versos de criança,
são como botões de rosa,ainda por abrir;
inspiram ternura,
mesmo antes de florir,
e murcham a um simples sopro do suão.
Mas os versos do teu Cosmonauta,
estão semeados de glória e d'amargura
e levam-te uma enorme Esperança
no AMANHÃ deste meu galope ardente,
para DEUS omnipotente.
De coração,de coração,
de quais
gostas mais,
MÃE?
De Lopes Sebastião(1972),in "Segunda Praça"

sexta-feira, 17 de julho de 2009

VELHOS / 2


O Mataboches,o que deixou os alemães passarem em sucessivas vagas,
para,depois,do seu buraco,os dizimar pelas costas,
está que não pode.
Reformado da fábrica onde,até há poucos anos,
apoveitando as espertinas de ex-gaseado,
guardava as larápias sombras da noite,
o Mataboches já nem à taberna vai.
A filha,antes de sair para o trabalho,
deixa-o sentado à janela,entre canário e sardinheira,
com um mata-moscas à mão.
E o Mataboches passeia o curto-alcance dos seus olhos
do amarelo ao rosa,
vigiando mosca e varejeira.
Às vezes apanha chuva e larga a rir
(por ser regado ao mesmo tempo que as sardinheiras?)
um riso que põe o canário,espavorido,
a harpejar as barras da gaiola.
Penugem amarela rodeia o Mataboches.
Ele não dá por nada;dá a filha,
que lhe ralha e lhe faz ciúmes com o Hilário,o canoro.
Passa-se,então,um curioso ritual:
a filha tira o canário da gaiola,diz-lhe:"Ele foi mau pró meu Hilário!",
e enquanto o pai se agita,regouga,troca e destroca
seus gestos de meio paralítico,
ela,com um olho no velho,beija o passarinho,
alisa-lhe as penas,quase o come.
E o ritual só acaba quando o Mataboches
mistura a sua baba com o seu ranho.
O Mataboches,o do C.E.P.,
peneira o ar com o mata-moscas
e erra a última mosca.
De Alexandre O'Neill

quarta-feira, 1 de julho de 2009

EL FUGITIVO(1948) excerto


Por la alta noche,por la vida entera,
de lágrima a papel,de ropa en ropa,
anduve en estos días abrumados.
Fui el fugitivo de la polícia:
y en la hora de cristal,en la espesura
de estrellas solitarias,
crucé ciudades,bosques,
chacarerías,puertos,
de la puerta de un ser humano a otro,
de la mano de un ser humano a otro ser,a otro ser.
Grave es la noche,pero el hombre
ha dispuesto sus signos fraternales,
y a ciegas por caminos y por sombras
llegué a la puerta iluminada,al pequeño
punto de estrella que era mío,
al fragmento de pan que en el bosque los lobos
no habían devorado.

...

De Pablo Neruda