sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O ÚLTIMO DIA DO ANO

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas,rasgarás papeis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário,formatura,promoção,glória,
doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereces viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu,teu avô também.
Em ti mesmo muitas coisas já expirou,outras espreitam a morte,
mas estás vivo.Ainda uma vez vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar
o recurso da doença e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas,ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos,a calçada.
A vida é gorda,oleosa,mortal,sub-reptícia.

De Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

NA LUZ A PRUMO

Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua,e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos,e as minhas,
pudesse entrar no azul,qualquer
azul: o do mar,
o do céu,o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(A ave,as mãos,a voz.)
E fossem chama. Quase.

De Eugénio de Andrade

domingo, 5 de dezembro de 2010

AO IDEAL

A quem como a ti amei eu,ó sombra amada!
Atraí-te a mim,pra dentro de mim - e desde então
quase me fiz eu sombra,e corpo tu.
Todavia,os meus olhos não aprendem,
afeitos a ver as coisas fora de si;
pra eles és sempre o eterno "fora-de-mim".
Ah,estes olhos põem-me fora de mim!

De F.Nietzsche

domingo, 21 de novembro de 2010

SAUDADE DO SAMBA

Com um nervoso no pé
E uma aflição na mão
Sem saber direito o que é
Fui consultar o cirurgião
Que já veio marcando a sangria
Para aquele mesmo dia
Mas eu
Saí de fininho
Fui visitar minha tia
Num terreiro lá da Olaria
Onde ela dá plantão
Depois de ouvir meus lamentos
Me benzeu com todo o sentimento
De amor que tem pelos seus
Falou com todo o respeito
A receita em nome de Deus:
- Tu tá com tesão de samba
Saudade pegou de jeito
De samba na mão
De samba no pé
Não vejo outra solução
Aproveita que é sexta-feira
Vai para a gafieira
Mas leva tua mulher!


De Gerson Deslandes,in Poetagem

domingo, 7 de novembro de 2010

JOSÉ

E  agora,José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora,José?
e agora,você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que fez versos,
que ama,protesta?
e agora,José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora,José?

E agora,José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José,e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro,José!

Sózinho no escuro
qual bicho-de-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha,José!
José,para onde?

De Carlos Drummond de Andrade(1902 - 1987)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

PALAVRAS

Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?

E das consoantes,que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?

Que lhes dirás,quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

De Eugénio de Andrade
Ilustração retirada do blog "Oração e Trabalho"

terça-feira, 5 de outubro de 2010

SONETO DE INÊS

Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês!Inês!Raínha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês!Inês!Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes  os teus braços
são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa  intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços
Inês!Inês!Inês de Portugal.

De Ary dos Santos

domingo, 3 de outubro de 2010

CORTEJO

"Passam varinas de gargantas sãs"
fraldiqueiros atrás de um bom regaço
bébés em quatro rodas e mamãs
com quem me faço.

Passa uma sobrancelha (ou uma andorinha?)
um joelho aprendiz
uma baraboleta (coitadina!)
presa nos dedos de um petiz.

Passa um chá de caridade pelo ar
a ver que asilo há-de ajudar
e a D.Pepa espanhola quase nua
que não passa de moda mas muda de rua.

Passa D.Alda de Carvalho e Castro
Tudela da Fonseca (ó respiração!)
Lopes e Silva e ainda Bastos
entre-parêntisis Bramão

Passa depressa ó João!

De Alexandre O'Neill

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

LICENÇA DE DORMIR

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.


Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.


De Adélia Prado

domingo, 12 de setembro de 2010

FIM DE VERÃO

Há dias,há noites em que as águas se movem
lentas na minha memória.Movem-se?Daqui as vejo imóveis,com esse peso do verão sobre o corpo.Ninguém dirá que respiram,que não estão mortas,talvez corrompidas,pelo menos sufocadas pelas últimas poeiras,as mais cruéis.Contemplo-as,tão caladas na sua clausura - estremecidas águas! E tão expectantes,não à superfície,nas entranhas,nas suas raízes mais fundas,onde uma espécie de murmúrio se articula,modula na sombra,umas sílabas prenhes de silêncio se desprendem,rebentam à tona,ténues bolhas de ar,menos que suspiros ainda.Como esquecê-las ?

De Eugénio de Andrade
Fotografia em http://acasadopoeta.zip.net/

sábado, 4 de setembro de 2010

NATUREZA MORTA

Da fruteira
não direi os frutos.

Que lá fiquem,
cerosos,
esferas (ou discos) para a luz funâmbula,
que não os esfaqueia
no quadro.

De Alexandre O'Neill
Óleo de Picasso

segunda-feira, 26 de julho de 2010

VERSOS

Versos?! Paguei-os. Alegria e raiva.
As palavras por vezes impotentes
outras vezes escorrendo sangue e seiva
ao morderem a vida com os dentes.

Poesia que és uns dias minha noiva
com seios de palavras complacentes.
Poesia que outras vezes grita e uiva
fêmea capaz de fecundar sementes.

Poesia minha amiga minha irmã
mulher da minha vida que inventei
para fazermos filhos amanhã.

Poesia minha força e meu castigo
meu incesto tão puro que nem sei
se é verdade que faço amor contigo.

De Ary dos Santos
Fotografia de Enrico Nawrath/Bayreuth Festival/EFE

sexta-feira, 23 de julho de 2010

ERA UMA VEZ...

O que uma casa pensa de si
Se nunca foi moradia?
Nunca mais de alguns dias
Nunca mais que um feriado?
O que pensa de si o sobrado?
Que passou os natais fechados
E desfilou carnavais alugados
O que pensa de si a varanda
Que mesmo olhando pro oceano
Só tinha uma rede de pano
Para desbotar com os anos?
- Porque não nasci quitanda?
Teria talvez a esperança
De um dia virar mercado!
Ou continuar armazém
De secos e molhados.
O que pensou de nós aquela casa?
Quando a deixamos sozinha
Do dia pra noite?
Batemos asas como andorinhas
Em busca de outro verão
Virou só uma fotografia
Solar,do que não mais existe
Perdeu o mar na janela
O luar na soleira da porta
Ela nem é mais ela
E ninguém mais se importa
Como se a casa não tivesse coração
Hoje eu descobri,muito triste
Que coração,a casa tinha
Nós é que não.

De Gerson Deslandes

sexta-feira, 9 de julho de 2010

FIM DE SEMANA

Estirado na areia,a olhar o azul,
ainda me treme o parvalhão do corpo,
do que houve que fazer para ganhar o nosso,
do que houve que esburgar para limpar o osso,
do que houve que descer para alcançar o céu,
já não digo esse de Vossa Reverência,
mas este onde estou,de azul e areia,
para onde,aos milhares,nos abalançamos,
como quem,às pressas,o corpo semeia.
De Alexandre O'Neill

sexta-feira, 2 de julho de 2010

LAMENTO DE LUÍS DE CAMÕES NA MORTE DE ANTÓNIO,SEU ESCRAVO

    ... viveu em tanta pobreza,que se não tivera
    um jau,chamado António,que da Índia trouxe,
    que de noite pedia esmola para o ajudar a
    sustentar,não pudera aturar a vida.
    Como se viu,tanto que o jau morreu,
     não durará ele muitos meses.
     Pedro de Mariz

Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um.

- eu vi a terra limpa no teu rosto,
só no teu rosto e nunca em mais nenhum.

De Eugénio de Andrade

quarta-feira, 16 de junho de 2010

FEMININAS

Mulheres e cidades
Tem familiaridades
Um misto de prazer
E sutil crueldade
Atraem iguais e opostos
Tem beleza e horror
No mesmo rosto
São cheias de charme
E mau gosto
Protegem o criminoso
Mas tocam o alarme
As melhores são as que tem
Mais defeitos que qualidades
Uma simplicidade vaidosa
Uma validade espartana
Que acerta quando nos engana
E ri dos nossos equívocos
E nessa receita improvável
Nascem tão femininas
que seu grande mistério
é ter um coração habitável
Num frágil peito de menina.

De Gerson Deslandes,in Poetagem

domingo, 6 de junho de 2010

UM NOME

Di-lo-ei pela cor dos teus olhos,
pela luz
onde me deito;
di-lo-ei pelo ódio,pelo amor
com que toquei as pedras nuas,
por uns passos verdes de ternura,
pelas adelfas,
quando as adelfas nestas ruas
podem saber a morte;
pelo mar
azul,
azul-cantábrico,azul-bilbau,
quando amanhece;
di-lo-ei pelo sangue
violado
e limpo e inocente;
por uma árvore,
uma só árvore,di-lo-ei:
Guernica!

De Eugénio de Andrade

segunda-feira, 31 de maio de 2010

SONETO DE LA CARTA

Amor de mis entrañas,viva muerte,
en vano espero tu palabra escrita
y pienso,con la flor que se marchita,
que si vivo sin mí quiero perderte.

El aire es immortal,la piedra inerte
ni conoce la sombra ni la evita.
Corazón interior no necesita
la miel helada que la luna verte.

Pero yo te sufrí,rasgué mis venas,
tigre y paloma,sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.

Llena,pues,de palabras mi locura
o déjame vivir en mi serena
noche del alma para siempre oscura.

De Frederico García Lorca

segunda-feira, 24 de maio de 2010

ELOGIO DE UMA CRIADA DE SERVIR

Mas quem és tu nobre sopeira
com os ralhos da criança
ainda há pouco?

Tu que pousas mãos de fada
entre os talheres
e percorres um reino
que se coze,aos poucos,

entre a hortaliça?

Tu mesmo avanças rápida
a esfregar os olhos
consegues da patroa
saídas,o namoro,as cartas.

Olha esses dedos
com seus aneis de peixe
nobre servente
com a capa dos bifes
e um pudim por coroa.

Olha esses cabelos
onde as flores de cebola
choram atadas pelo garfo
que trincha na cozinha.

Para aqui te estou falando
pois tu és a rainha
que descasca as batatas
e ouve concertina.

De Armando da Silva Carvalho

sexta-feira, 14 de maio de 2010

A UM JOVEM SOLDADO

Jovem.
Coroam-lhe as giestas os cabelos,
Generosas e loiras como fora.
Jaz no imenso campo
E é um grito
Que o vento,que o incensa,
Chora.

Morto.
Seu corpo liso e belo que vivera
Como as papoilas acres,dorme agora.
E seu olhar azul é uma estrela
Que a terra,que o sepulta,
Ignora.

De Ary dos Santos

sexta-feira, 7 de maio de 2010

ANIMAIS DOENTES

Animais doentes as palavras
Também elas
Vespas formigas cabras
De trote difícil e miúdo
Gafanhotos alerta
Pombas vomitadas pelo azul
Bichos de conta bichos que fazem de conta
Pequeníssimas pulgas uma sílaba só
Lagartos melancólicos
Estúpidas galinhas corriqueiras
Tudo tão doente tão difícil
De manejar de lançar de provocar
De reunir
De fazer viver

Ou então as orgulhosas
Palavras raras
Plumas de cores incandescentes
Altos gritos no aviário
E o branco sem uso
Imaculado
De certas aves da solidão

Para dizer
Queria palavras tão reais como chamas
E tão precárias
Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte
No discurso de fogo
Logo extintas na combustão das próximas
Palavras que não esperassem
Em sal ou em diamante
O minuto ridículo precioso raro
De sangrar a luz a gota de veneno
Cativa das entranhas ociosas.

De Alexandre O'Neill

segunda-feira, 3 de maio de 2010

A MINHA HORTALICEIRA

Vem às vezes bater à minha porta
a velhinha mais linda cá do Bairro.
Vem trazer os mimos da sua fresca horta;
e tem um bater tão doce de meiguice...
- "Trago laranjas finas,meu senhor!
    Ajude-me a baixar o cesto,por favor..."

E eu,que sou filho do trigo e dos favos de mel,
que fui a defumar na flor da laranjeira,
fico enlevado naquele olhar tão doce
a contar laranjas como se anjo fosse
a contar por brincadeira...

- (Anjos não sabem somar,cabeça tonta!
   Nasceram com tudo já somado.
   - Pois não,mas faz de conta).
- Um quarteirão,não foi que disse?
- Vinte e cinco e mais uma para o Samuel.

De Lopes Sebastião

segunda-feira, 26 de abril de 2010

PROMETEU

Abafai meus gritos com mordaças,
maior será minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai meus ossos!

O meu sangue será minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!

De Joaquim Namorado

quarta-feira, 21 de abril de 2010

ABRIL DAS ONDAS

Nos sonhos vê-se o mar
sonhamos com o mar
em Abril
questão complicada 
que
a vida
descomplica
no mês de chuvas e flores
abril águas mil
primavera
rebentos de tudo
flores
amores
sonhos com os mares
ondas indomáveis
mesmo
numa rebentação rebelde
amores
mares
rebeldes
sonhos de abril
o das águas mil
com ondas
com mar
com amar

segunda-feira, 19 de abril de 2010

CATINGA DE INIMIGO

Minha senhora da cruz vermelha
    crucificada na cruz gamada
trazeis-me novas da minha orelha?

                  Ai  é cortada!

     Minha senhora visitadora
    da minha vida tão desairada
trazeis-me novas da minha cova?

                 Ai é cavada!

      Minha senhora retardadora
     desta vingança sempre adiada
trazeis-me novas da minha hora?

                Ui é suada!

De Ary dos Santos

sexta-feira, 9 de abril de 2010

SOBRE UMA FOTOGRAFIA DE AUGUSTO CABRITA


Enxúndias ensacadas no cotim da farda,
papel de cartucho que quase se rasgava,
repressor-burocrata,descansavas à porta
do teu posto de escrita e de porrada.

No coldre,a pistola;na pança,a feijoada;
na perna,a polaina;no cérebro,o corrimento
que é mais que sensação,menos que pensamento.

E sob o teu rabo,a cadeira gemia
ao compasso da nalga que se deslocava
do suor que sobre o tampo produzia.

Nos campos,a manada trabalhava.

Quem te fotografava,de longe é que o fazia.
Estava de passagem para uma outra vida.

De Alexandre O'Neill

terça-feira, 23 de março de 2010

PROCURO-TE

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh,a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e um corpo estendido.

Procuro-te:fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti,e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes de a morte se aproximar,procuro-te.
Nas ruas,nos barcos,na cama,
com amor,com ódio,ao sol,à chuva,
de noite,de dia,triste,alegre - procuro-te.

De Eugénio de Andrade

segunda-feira, 15 de março de 2010

ANTES QUE SEJA TARDE

Amigo
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda,amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
Antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

De Manuel da Fonseca

quarta-feira, 10 de março de 2010

DANÇA

A Carmen anda a bailar
pelas ruas de Sevilha.
Os seus cabelos são brancos
e brilhantes as pipilas.

Meninas,
correi as cortinas!

Em sua cabeça enrosca-se
uma serpente amarela,
e vai sonhando na dança
com os galãs de outras eras.

Meninas,
correi as cortinas!

As ruas estão desertas
e nos fundos adivinham-se
uns corações andaluzes
a buscar velhos espinhos.

Meninas,
correi as cortinas!

De García Lorca

quinta-feira, 4 de março de 2010

A BRUXA (2)

As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas trituradas
pelo próprio veneno das entranhas.

As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas  tal como as aranhas.

Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.

Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espalhadas pela pele
e é filha de si própria. É uma bruxa.

De Ary dos Santos

segunda-feira, 1 de março de 2010

COMO OS LOBOS

 
Fujo dos homens
Como os lobos fogem
          E não me sinto lobo.

Escondo-me em fojos
Como os lobos fazem
          E não me sinto lobo.

Ergo à Lua o meu uivo angustiado
           E não me sinto lobo.

Os meus ouvidos outros
Ouvem queixas
De lobos espectrais.
E não me sinto lobo.

Alvejaram-me a tiro
Entre os olhos leais
E não me sinto lobo.

Se estoiro como o lobo
Que também tem um astro
Repercutindo ânsias solitárias
Terríveis e humildes
Em esferas mudas várias
Deixo um rastro de sangue
Um invisível pasto
A vampiros humanos.

E assim na morte vamos
Lobos,irmãos,iguais.

De Natércia Freire

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

SENHOR ARCANJO

Senhor arcanjo
Vamos jantar!
Caem os anjos
Num alguidar

Hibernam tíbias
Suspiram rãs
Comem orquídeas
Nas barbacãs

Entra na porta
Menino-faia
Prova uma torta
Desta papaia

Palita os dentes
Põe-te a cavar
Dormem videntes
No Ultramar

Que bela fita
Que bem não está
A prima Bia
De tafetá

Come um repolho
E vai o lente
Parte-se um pente
Fura-se um olho

A pacotilha
Tem mais amor
À gargantilha
Do regedor

Põe a gravata
Menino bem
Que essa cantata
Não soa bem

Senhor arcanjo
Vamos jantar
Caem os anjos
Num alguidar
E as quatro filhas
Do marajá
Vão de patilhas
Beber o chá

De José Afonso
Nos 23 anos da sua morte