domingo, 30 de novembro de 2008
A LETRA QUE NÃO COUBE NA RUMBA
Descruzadas as tíbias,
jogada fora a caveira,
com a moralidade a rir a bandeiras despregadas,
a canhoneiras assestadas,
com a gota paralisando as Caraíbas,
com os tesouros a contas com o fisco
- onde parava o corsário e o seu risco?
No engancho de mão,no bafejo de rum,
no beiramar passeio a pernas quatro(uma de pau),
mostrou o olho despalado: era o corisco
- vazado o esperava - de quem foi tão mau.
(Há ossos de peixe,há ossos de homem
na sopa que o turista e o corsário comem?)
Baralhou.
Cortei.
Deu.
Joguei.
Sob o trunfo de espadas,
seu passado,carta a carta,vislumbrei.
De Alexandre O'Neill
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
É PRECISO UM PAÍS
Não mais Alcácer Quibir.
É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar
um chão para florir.
É preciso um país.
Não mais navios a partir
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida
é preciso ficar e descobrir
a pátria onde foi traída
não só a independência
mas a vida.
De Manuel Alegre,in O Canto e as Armas
domingo, 23 de novembro de 2008
PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
De Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto,1919 - 2004)
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
A VERDADE
A Verdade -
uma mulher,nada melhor:
manhosa no seu pudor:
aquilo de que mais gosta,
não o quer saber:
põe os dedos diante...
A quem cede ela? Só à força! -
Usai pois da força,
sede duros,ó mais sábios!
Tendes de violentá-la,
à pudibunda Verdade...
Para a sua felicidade
é precisa a violência -
- ela é uma mulher,nada melhor.
De F.Nietzsche
Escultura de Henry Moore
terça-feira, 18 de novembro de 2008
NADA QUE TIVE ERA MEU
Nada que tive era meu.
Perdi estradas,perdi leito.
Na pedra onde me deito
Nada fala de alvos linhos.
Se,com cegos,me aventuro,
A caminhar rente aos muros,
É que meus olhos impuros
Sonham Cristo nos caminhos.
Nada que tive era meu
E o corpo não quero eu.
Podia servir de embalo,
Mas serve de sepultura.
Cemitério de asas finas,
Tange e plange aladas crinas,
Canto de praias sulinas
De infinitas amarguras...
De Natércia Freire
Pintura de Dali
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
VIAGEM
Persegue-me na noite a voz do impossível,
Rebentam-me aos ouvidos as ampolas de sangue.
Avanço devagar para a hidra intangível
Que dorme no horizonte do lado do levante.
Fascinam-me o mistério do seu rosto sem nome,
O muro de silêncio que a separa de mim,
A jornada no escuro,os perigos,os escombros,
As barreiras de sombra a que vou pondo fim.
Avanço devagar para a hidra que dorme
O seu sono latente na véspera de mim.
E percorro países como esqueço palavras
E atravesso rios como desprezo leis
E pairo nas alturas com as costas voltadas
Aos séculos de pasmo que para trás deixei.
Avanço devagar para a hidra que dorme
O seu sono de pedra num abismo sem fundo.
É a hora em que a terra não gira,
Em que o vento não corre.
É o tempo do homem descobrir o mundo.
De Ary dos Santos
domingo, 9 de novembro de 2008
E DE NOVO,LISBOA...
E de novo,Lisboa,te remancho,
numa deriva da quem tudo olha
de viés:esvaído,o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.
Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.
Groselha,na esplanada,bebe a velha,
e um cartaz,da parede,nos convida
a dar o sangue.Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida;mas que vida?
Que fazemos,Lisboa,os dois,aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?
De Alexandre O'Neill
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
NINGUÉM ME VENHA DAR VIDA
Ninguém me venha dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferida,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser
e não me quero encontrar,
que estou dentro de um navio
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.
Corações por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e corais.
Fim ditoso,hora feliz:
guardai meu amor sem preço
que só quis a quem não quis.
De Cecília Meireles
(Rio de Janeiro, 1901-1964)
terça-feira, 4 de novembro de 2008
LÍNGUA DOS VERSOS
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