segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
UTOPIA
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo,mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio
Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso,a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio,este rumo,esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?
De José Afonso
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
GOETZ
São os troncos troncos e um monte
puxado para o sol oblìquamente.
E a terra é de carvão,mar de raízes
e o sol dourado de limão,quse oculto,
estende-se sobre o verde da folhagem.
Uns fogachos brancos rompem sonoros.
Não se tinha contemplado ainda a porta.
Era vermelha sob a fechadura negra.
Pela fresta,o espaço era verde acinzentado
E duas cordas ao lado,atravassadas
por um ponto de interrogação horizontal
caíam musicais.
A praia era de guitarras destruídas,
voos negros rosados sobre azul,
e sobre o branco multliplicado do céu cantava
o azul,
cantava o branco sol e azul
e os fragmentos de guitarra verdes vermelhos
negros
cantavam mar azul,praia vermelha,
voos de andorinha negros.
puxado para o sol oblìquamente.
E a terra é de carvão,mar de raízes
e o sol dourado de limão,quse oculto,
estende-se sobre o verde da folhagem.
Uns fogachos brancos rompem sonoros.
Não se tinha contemplado ainda a porta.
Era vermelha sob a fechadura negra.
Pela fresta,o espaço era verde acinzentado
E duas cordas ao lado,atravassadas
por um ponto de interrogação horizontal
caíam musicais.
A praia era de guitarras destruídas,
voos negros rosados sobre azul,
e sobre o branco multliplicado do céu cantava
o azul,
cantava o branco sol e azul
e os fragmentos de guitarra verdes vermelhos
negros
cantavam mar azul,praia vermelha,
voos de andorinha negros.
De António Ramos Rosa
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
OU ARCANJO OU LADRÃO
Ou arcanjo ou ladrão,
Devorador
De perfumes,
De corpos
E de mitos.
Rei nos países interditos.
Conviva solitário do festim
Em que a noite me chama à sua mesa,
Pescador de silêncios e jardins
Na cidade terrível e acesa.
Ou arcanjo ou ladrão. Destruidor
Da imagem do outro que transporto
Tatuada no peito.
Rosa de carne azul que me deslumbra
Quando penetro a noite com o sexo
Que a minha solidão tornou perfeito.
Assim vogo e arremeto pelos tempos,
Invisível Apolo citadino,
Falus de herói coroado de giestas,
Transgressor voluntário do destino,
Pé de cabra forçando o impossível,
Brisa azul esquivando-se entre os outros,
Com laivos de infinito nas passadas,
Lampejos de infinito nos olhos admiráveis
E flores de estrume a definir-me a testa
De Príncipe e Senhor dos intocáveis.
De Ary dos Santos
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
EM MEMÓRIA DE CHICO MENDES
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
CIDADEZINHA
No meu interior uma cidadezinha
Sem igrejas,sem bordeis,sem cinemas
Com muita luz do sol,com muita luz
Brilhando por um rio que atravessa
Junto à rua principal
Sem perfeituras,sem ditaduras
Sem ratos nas mesas
Nem gravatas lambendo sem parar
E para se chegar na minha casa
Tem que virar os olhos para mim
Tem que deixar de lado a goiabada
E me trazer o vinho
Beber pelo caminho
A alegria dos pardais
E a poesia envernizada de uma rua
Num subúrbio natural dentro de mim
De Gerson Deslandes,in Poetagem
Imagem retirada de baciadasalmas.com
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
CANÇÃO DO VERDADEIRO ABANDONO
Podem todos rir de mim,
Podem correr-me à pedrada,
Podem espreitar-me à janela
E ter a porta fechada.
Com palavras de ilusão
Não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
Não tem vislumbres de além.
Não sou irmã das estrelas,
Nem das pombas,nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
De bicho que sofre as pedras
E se desloca de rastos.
De Natércia Freire
Gravura de Oswaldo Goeldi
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
A FACA
A palavra será faca
o sentido será gume
a imagem será chama
mas a matéria é o lume.
Lume dos nervos riscados
pelo fósforo do medo
lume dos dentes cerrados
pela goma dum segredo.
Lume das faces de cera
lume dos dedos de cal
lume golpe lume pedra
lume silêncio metal.
Lume que se acende a frio
e nos devora por dentro
lume agulha lume fio
da faca do pensamento.
Lume navalha que rasga
o ventre da solidão
vingança de quem se gasta
queimando frases em vão.
Lume lembrança das coisas
que nos arderam na voz
cinza viva que nos corta
e nos separa de nós.
De Ary dos Santos
o sentido será gume
a imagem será chama
mas a matéria é o lume.
Lume dos nervos riscados
pelo fósforo do medo
lume dos dentes cerrados
pela goma dum segredo.
Lume das faces de cera
lume dos dedos de cal
lume golpe lume pedra
lume silêncio metal.
Lume que se acende a frio
e nos devora por dentro
lume agulha lume fio
da faca do pensamento.
Lume navalha que rasga
o ventre da solidão
vingança de quem se gasta
queimando frases em vão.
Lume lembrança das coisas
que nos arderam na voz
cinza viva que nos corta
e nos separa de nós.
De Ary dos Santos
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
PARA VINICIUS
Há muita gente ainda por aí(tenho medo que aumente!) que de ti o que quer é o catorze,quer dizer o soneto, e rejeita teu outro meio de comunicar,que afinal é o mesmo:tocantar.
Perceba,por uma vez,essa gentalha,que o Vinicius poeta e o Vinicius sambista são da mesma igualha!
São
o operário
em construção.
Abração
Alexandre O'Neill
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
POEMA DO NATAL
PARA ISSO fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrêla a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo,pisar leve,ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso,talvez,de amor
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem,graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte -
De repente nunca mais,esperaremos...
Hoje a noite é jovem;da morte,apenas
Nascemos,imensamente.
De Vinicius de Moraes
Incluido na edição inglesa "Penguin" de poesia latino-americana
terça-feira, 2 de dezembro de 2008
PARÁBOLA
Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? - Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!
Mas - vamos! - vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto,sim,que é pra vós,filhos de Deus!
Edificai-vos,regalai os olhos!
De J.W.Goetthe (1794 - 1832)
domingo, 30 de novembro de 2008
A LETRA QUE NÃO COUBE NA RUMBA
Descruzadas as tíbias,
jogada fora a caveira,
com a moralidade a rir a bandeiras despregadas,
a canhoneiras assestadas,
com a gota paralisando as Caraíbas,
com os tesouros a contas com o fisco
- onde parava o corsário e o seu risco?
No engancho de mão,no bafejo de rum,
no beiramar passeio a pernas quatro(uma de pau),
mostrou o olho despalado: era o corisco
- vazado o esperava - de quem foi tão mau.
(Há ossos de peixe,há ossos de homem
na sopa que o turista e o corsário comem?)
Baralhou.
Cortei.
Deu.
Joguei.
Sob o trunfo de espadas,
seu passado,carta a carta,vislumbrei.
De Alexandre O'Neill
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
É PRECISO UM PAÍS
Não mais Alcácer Quibir.
É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar
um chão para florir.
É preciso um país.
Não mais navios a partir
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida
é preciso ficar e descobrir
a pátria onde foi traída
não só a independência
mas a vida.
De Manuel Alegre,in O Canto e as Armas
domingo, 23 de novembro de 2008
PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
De Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto,1919 - 2004)
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
A VERDADE
A Verdade -
uma mulher,nada melhor:
manhosa no seu pudor:
aquilo de que mais gosta,
não o quer saber:
põe os dedos diante...
A quem cede ela? Só à força! -
Usai pois da força,
sede duros,ó mais sábios!
Tendes de violentá-la,
à pudibunda Verdade...
Para a sua felicidade
é precisa a violência -
- ela é uma mulher,nada melhor.
De F.Nietzsche
Escultura de Henry Moore
terça-feira, 18 de novembro de 2008
NADA QUE TIVE ERA MEU
Nada que tive era meu.
Perdi estradas,perdi leito.
Na pedra onde me deito
Nada fala de alvos linhos.
Se,com cegos,me aventuro,
A caminhar rente aos muros,
É que meus olhos impuros
Sonham Cristo nos caminhos.
Nada que tive era meu
E o corpo não quero eu.
Podia servir de embalo,
Mas serve de sepultura.
Cemitério de asas finas,
Tange e plange aladas crinas,
Canto de praias sulinas
De infinitas amarguras...
De Natércia Freire
Pintura de Dali
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
VIAGEM
Persegue-me na noite a voz do impossível,
Rebentam-me aos ouvidos as ampolas de sangue.
Avanço devagar para a hidra intangível
Que dorme no horizonte do lado do levante.
Fascinam-me o mistério do seu rosto sem nome,
O muro de silêncio que a separa de mim,
A jornada no escuro,os perigos,os escombros,
As barreiras de sombra a que vou pondo fim.
Avanço devagar para a hidra que dorme
O seu sono latente na véspera de mim.
E percorro países como esqueço palavras
E atravesso rios como desprezo leis
E pairo nas alturas com as costas voltadas
Aos séculos de pasmo que para trás deixei.
Avanço devagar para a hidra que dorme
O seu sono de pedra num abismo sem fundo.
É a hora em que a terra não gira,
Em que o vento não corre.
É o tempo do homem descobrir o mundo.
De Ary dos Santos
domingo, 9 de novembro de 2008
E DE NOVO,LISBOA...
E de novo,Lisboa,te remancho,
numa deriva da quem tudo olha
de viés:esvaído,o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.
Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.
Groselha,na esplanada,bebe a velha,
e um cartaz,da parede,nos convida
a dar o sangue.Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida;mas que vida?
Que fazemos,Lisboa,os dois,aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?
De Alexandre O'Neill
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
NINGUÉM ME VENHA DAR VIDA
Ninguém me venha dar vida,
que estou morrendo de amor,
que estou feliz de morrer,
que não tenho mal nem dor,
que estou de sonho ferida,
que não me quero curar,
que estou deixando de ser
e não me quero encontrar,
que estou dentro de um navio
que sei que vai naufragar,
já não falo e ainda sorrio,
porque está perto de mim
o dono verde do mar
que busquei desde o começo,
e estava apenas no fim.
Corações por que chorais?
Preparai meu arremesso
para as algas e corais.
Fim ditoso,hora feliz:
guardai meu amor sem preço
que só quis a quem não quis.
De Cecília Meireles
(Rio de Janeiro, 1901-1964)
terça-feira, 4 de novembro de 2008
LÍNGUA DOS VERSOS
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
CAEIRO
Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito.
Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito,não creio na eternidade.
Creio que o espaço começa numa parte e numa parte acaba
E que agora e antes d'isso ha absolutamente nada.
Creio que o tempo tem um princípio e tem um fim,
E que antes e depois d'isso não havia tempo.
Porque ha-de ser isto falso? Falso é fallar de infinitos
Como se soubessemos o que são de os podermos entender.
Não:tudo é uma quantidade de cousas.
Tudo é definidi,tudo é limitado,tudo é cousas.
De Fernando Pessoa
Poema inédito,sem data,transcrito por Jerónimo Pizarro
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
A UM PINTOR
Admiro a tua paciência vegetal,
o teu crescimento de raiz,
a tua pequena mão cega e certeira,
inocente,adequada e fiel,
a mão honesta e competente
que trazes a trabalhar na tela ou no papel,
a mão que abre janelas para o mundo
da nossa imaginação
e portas para a rua onde gastamos
o coração...
Que desenho,que desígnio traça a tua mão?
De Alexandre O'Neill
Desenho de Santa Rita Pintor
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
ARTE DOS VERSOS
domingo, 12 de outubro de 2008
ASSIM
Assim por muito mais e muito menos
Assim por heroísmo e cobardia.
Assim a tarde a noite no momento,
Assim pensar em mim quando vivias.
Assim os dedos longos nos cabelos
Dos mortos abraçados e cativos.
Assim esta miséria de estar viva
E não saber estar viva quando vivo.
Assim nas brancas árvores o tempo
Assim ter acabado o meu destino
E ler-me noutros versos,noutros nomes,
Assim desconhecer onde habito.
Assim por muito mais e muito menos
Se acaba,em vida,a vida ao suicida.
Assim por ser a hora mais cinzenta,
O desamparo assim da minha vida.
De Natércia Freire
Fotografia retirada de anomalias.weblog.com.pt
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
PIM PAM PUM
PRESÍDIO DE SEGURANÇA MÍNIMA
A paixão é presídio
De segurança mínima
Tem toda a sorte
De jogos de azar
Tem quem fala
Tem quem ouve
Sem celular
Tem corredor da morte
Tem faltas de ar
Tem quem nem se importe
Tem quem corte os pulsos
Tem quem consegue fugir
Tem quem é expulso
Tem quem não tem
Pra onde ir
A paixão é presídio sagrado
De segurança mínima
Quando cheguei nessa vida
Já estava condenado
De Gerson Deslandes
Fotografia de Andreia Cruz
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
AMADOR CEA
Como habían detenido a mi padre
y pasó el Presidente que elegimos
y dijo que todos éramos libres,yo pedí que a mi viejo lo soltaran.
Me llevaron y me pegaron todo un día.
No conozco a nadie en el quartel. No sé,no puedo
ni recordar sus caras. Era la policía.
Cuando perdía el conocimiento,me tiraban
agua en el cuerpo y me seguían pegando.
En la tarde,antes de salir,me llevaron
arrastando a una sala de baño,
me empujaron la cabeza adentro de una taza
de W.C. llena de excrementos. Me ahogaba.
"Ahora,sal a pedir libertad al Presidente,
que te manda este regalo",me decían.
Me siento apaleado,esta costilla me la rompieron.
Pero por dentro estoy como antes,camarada.
A nosotros no nos rompen sino matándonos.
De Pablo Neruda
Pintura de Malangatana
domingo, 28 de setembro de 2008
LUGARES DO OUTONO
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
COM CINCO LETRAS DE SANGUE
De súbito três tiros na memória.
Apagaram-se se luzes. Noite. Noite.
De súbito três tiros nas palavras
um poeta calou-se apagou-se a canção.
De súbito um poema foi bombardeado
um poeta fechou-se nas vogais
cercado por consoantes que talvez
caminhassem cantando para um verso.
Eram granadas? Eram sílabas de fogo?
E de súbito a guerra. Noite. Noite. E um poeta
com cinco letras escreveu no chão: PORQUÊ?
Com cinco letras do seu próprio sangue.
De Manuel Alegre,in A Praça da Canção
domingo, 21 de setembro de 2008
IMAGINANDO
Nesses dias deitados
Eu pessoalmente gostaria
De dizer a você
O quanto realmente se chora na noite
O quanto se ri de dia da própria desgraça de amar
Não reclamo de nada
Estou até muito bem assim
Imaginando-te sempre doce,sempre boa
Sempre emaranhada
Nos diversos cabelos do meu corpo
Sei muito bem que isso é besteira
Sei muito bem o quanto me abandonas
A cada dia. Mas por isso mesmo
Sei muito bem que nunca mais
É sinónimo de sempre
E imaginar-te comigo é te ter ainda um pouco
Pensar em teu corpo é te amar novamente
Tanto que fico até rouco,como você sabe quando.
Ainda tomo sorvete de coco com você - peço duas
E vou para o carro vazio! O sorveteiro ri!
Não faz mal se o teu derrete no banco
Você não sabia mesmo tomar sorvete sem lambuzar
Vê como já estou imaginando? Mas é assim
Que eu gosto de ficar: imaginando!
Você e tudo o mais que compõe você
Como um samba feliz do Cartola
Eu tenho que continuar pensando em você
A gente só fica mesmo sozinho
Quando não tem ninguém no coração.
De Gerson Deslandes
Fotografia retirada de olhares.aeiou.pt
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
MÃE
Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas,que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.
Chamo aos gritos por ti - não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto - sinto frio.
Ou és outra,ou me enganas,ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.
Mãe:
Abre os olhos ao menos,diz que sim!
Diz que me vês ainda,que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
De Miguel Torga (1907 - 1995)
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
FLÁVIA
Dez anos de idade
Sonhos de infância em apogeu
Criança linda de verdade
Que a mão do Homem adormeceu.
Vinte anos agora tem,
Seu olhar impávido e sereno
Dá força sua Mãe
Que a cuida com tanto zelo.
Um verdadeiro bebé grande
É esta menina imaculada,
Por isso há muita gente que reclame
Pela justiça atrasada.
O ralo dessa piscina
Não sugou só seus cabelos,
Sugou-lhe também a vida
Tudo o que há de mais belo.
Uma vergonha verdadeira,
É de bradar aos céus tanta lentidão
Porque na justiça brasileira
Dorme a voz da razão.
De Isabel Filipe,disponibilizado por Menina Marota
Selo do blogue ADesenhar
domingo, 14 de setembro de 2008
À BAILARINA
Ela dança com todos os anos
desperta e serena
e sem perguntas sorri
ela caminha
ela vive e respira
comigo convosco
em qualquer parte do mundo
nasceu na infância e acordou hoje
Se escrevo este poema
onde ela dança
é tão-só porque vi hoje o mar
e corri na areia a seu lado
Se existe um pouco de ar
ou todo o ar
e nele apenas somos sem disfarce
para sermos quem somos
é porque pisei a praia dura e fresca
e rolámos como as ondas na areia
Ela dança e vive
na claridade do amigo
no espaço da cozinha
na luz do mosaico
na madeira brilhante
ao sol que entrou em casa
A flor estava na mesa
e eu vi a flor
e vi o raio de sol
e as suas pernas de bailarina
ao longo do corredor
Hoje ainda é dia
diz o seu rosto
Amanhã é dia
diz o seu andar
Um dia diferente
o que há-de vir
Amanhã será diferente
Ó bailarina minha
dou-te esta rosa hoje
por ser o dia de hoje
e por tu existires
tão amanhã em mim
De António Ramos Rosa
Pintura de Degas
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
* * *
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
De Alexandre O'Neill
domingo, 7 de setembro de 2008
O DIREITO-TORTO
Um homeopatha sou,
Tenho essa satisfação!
Se me chamam logo vou
Co'esta botica na mão!
Oh!que grande descoberta,
Pasmosa de raridade!
Co'ella toda a gente acerta
A curar a humanidade!
E tambem a enriquecer
Sem as aulas ter cursado!
Basta n'um guia mexer,
Está-se logo formado!
E formado duplamente
Em pharmacia e medicina!
Quem quizer que exp'rimente,
De seu terá uma mina!
Medico de fresca data,
Basta n'um guia mexer,
Eil-o tambem homeopatha,
E homeopatha a valer!
E nenhum tempo é preciso
Para se obter clientella:
Nos labios basta um sorriso,
E a taboleta á janella!
E se algum doente estica,
Ninguem n'isso inda pensou:
Com consultorio e botica,
Um homeopatha eu sou!
De Gaudêncio Carneiro,Lisboa,1878
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
A DENTADURA
(aos Exmos. Sisos Pro-Tese)
As palavras concretas
são autopoetas
autorroedoras
autodigestivas
mas não auto-sangue
mas não autovivas.
As palavras setas
são como os poetas
velobicicletas
que pedalampasmam
que pedalotentam
pelas viasvidas
que pedalamdentam
que pedalam asnam
comendo violetas
mastigando urtigas.
As palavras poetas
dispostas aos ramos
de rosas selectas
nas antologias.
As palavras ostras
da literatura
num colar de pérolas
de puericultura.
As palavras nastros
as palavras lastros
que fazem dos astros
uma dentadura.
De Ary dos Santos
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
IMPROVISO
"Uma rosa depois da neve,
Não sei que fazer
de uma rosa no inverno.
Se não for para arder,
ser rosa no inverno de que serve?"
EUGÉNIO DE ANDRADE
A rosa é sempre a mensagem,
O fogo é sempre a viagem
Dos braços abrasados na miragem
Do calor de ocultos véus
Poeta!Poeta em astros
De altos lumes
De altos mastros
Lembranças de lumes castos
E de perfumadas bodas
Em teatros saudosos
Eternos bailes de roda...
Na sonhada perfeição
Dos leitos que a noite embala
Nos seus véus
De ocultos sagrados rios
Rios de amor ocultados
Na paixão dos bem-amados
Água,Luz.Murmúrio a dois,
No olhar adormecido.
Luz de um céu imaginado
No presente,no passado
Água,voz,canção de sóis.
De Natércia Freire
terça-feira, 26 de agosto de 2008
A BARCA MISTERIOSA
Ontem à noite,quando tudo já dormia
E o vento com suspiros indecisos,
Pelas vielas mal corria,
Nenhum repouso me dava o travesseiro,
Nem a papoula,nem o que de resto
Dá sono profundo - a consciência tranquila.
Expulsei por fim da ideia do sono
E corri para a praia. Havia luar
E o tempo estava ameno, - encontrei
Homem e barco sobre a areia quente,
Sonolentos ambos,pastor e ovelha: -
Sonolento o barco se afastou de terra.
Uma hora,talvez mesmo duas,
Ou foi um ano? - Então,de súbito,
Espírito e pensamentos mergulharam
Numa eterna monotonia,
E um abismo sem limites
Se abriu: - e tudo acabou!
- A manhã chegou: sobre profundas negras
Está um barco que repousa,repousa...
Que aconteceu? Ouviu-se um grito,e em breve
Mais cem gritos: Que houve? Sangue? - -
Nada aconteceu! Dormimos,dormimos
Todos - ai,tão bem! tão bem!
De F. Nietzsche
terça-feira, 19 de agosto de 2008
MEU GALOPE É EM FRENTE
Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espectam
e aos braços que me chamam.
E porque,dia e noite,minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos sempre esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a mim que me importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
Eu sigo e seguirei
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos campos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra,mar e ar.
Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não,meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça,a outro mundo,a outra gente.
É andar,é andar!
De Mário Dionísio (1916 - 1993)
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
SONETO IMPERFEITO DA CAMINHADA PERFEITA
Já não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.
Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
De Sidónio Muralha (1920 - 1982)
quarta-feira, 6 de agosto de 2008
O INFANTE
Deus quer,o homem sonha,a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda una,
Que o mar se unisse,já não separasse.
Sagrou-te,e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou,correndo,até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira,de repente,
Surgir,redonda,do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar,e o Império se desfez.
Senhor,falta cumprir-se Portugal!
De Fernando Pessoa (1888 - 1935)
domingo, 3 de agosto de 2008
LIBERDADE
Ser livre é querer ir e ter um rumo
e ir sem medo,
mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
transformar o fumo
do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
só ver portas fechadas e pessoas hostis
e arrancar teimosamente do caminho
sonhos de sol
com fúrias de raiz.
É estar atado,amordaçado,em sangue,exausto
e,mesmo assim,
só de pensar gritar
gritar
e só de pensar ir
ir e chegar ao fim.
De Armindo Rodrigues (1904 - 1993)
quarta-feira, 30 de julho de 2008
SENHORA,PARTEM TAM TRISTES
Senhora,partem tam tristes
meus olhos por vós,meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tam tristes,tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados,tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
de João Roiz de Castel-Branco (Séc. XV)
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