sexta-feira, 26 de junho de 2009

CURRICULUM



Eu não aceito cheques
Nem ando na contra-mão
Não passo embaixo de escadas
Não jogo papel no chão
Nunca passei dos oitenta
Nem avancei o sinal
Não posso comer pimenta
Nem abusar do sal
Eu não cometo adultério
Nem peço dinheiro emprestado
Só leio se for de mistério
Não compro nada fiado
Tenho amigos na polícia
Um filho no Colégio Militar
Não gosto de quem tem malícia
Rezo antes de me deitar
Nunca chego atrasado
E durmo antes das dez
Acordo num banho gelado
No chão eu não boto os pés
Mulher minha não trabalha fora
Por isso trabalho demais
Se a filha não chega na hora
Na outra vez não vai mais
Não bebo,não fumo,não jogo
Não falo mal do governo
Pragas pros outros não rogo
Nem mando ninguém pro inferno
Não gosto de comunistas
Odeio o jogo do bicho
Não passo nem assino listas
Não jogo comida no lixo
Comungo todo domingo
Lavo meu carro também
Não falo palavrão nem xingo
Adoro dizer amém
Eu não dispenso a gravata
Acordo sempre feliz
Adoro arroz com batata
Adoro também meu país
Mas sei que quando chegar no céu
São Pedro vai me dizer:
- Meu filho,bota o teu chapéu
E volta pra Terra,vai viver!

De Gerson Deslandes
O "boneco" foi-me enviado,sem menção ao autor

domingo, 21 de junho de 2009

O ÔNIBUS GRAYHOUND ATRAVESSA O NÔVO MÉXICO


TERRA SÊCA árvore sêca
E a bomba de gasolina
Casa sêca paiol sêco
E a bomba de gasolina
Serpente sêca na estrada
E a bomba de gasolina
Pássaro sêco no fio
(E a bomba de gasolina)
Do telégrafo: s.o.s.
E a bomba de gasolina
A pele sêca o olhar sêco
(E a bomba de gasolina
Do índio que não esquece
E a bomba de gasolina
E a bomba de gasolina
E a bomba de gasolina
E a bomba de gasolina...
DeVinicius de Moraes

quinta-feira, 18 de junho de 2009

MORREU AO AMANHECER


Noite de quatro luas
e uma única árvore,
com uma única sombra
e um único pássaro.
Busco na minha carne as
pegadas de teus lábios.
Beija a nascente o vento
sem o tocar.
Levo o Não que me deste,
sobre a palma da mão,
como um limão de cera
quase branco.
Noite de quatro luas
e uma única árvore.
Na ponta de uma agulha
está meu amor -- girando!
De Frederico García Lorca
Fotografia "picada" de llena.com/blog/?m=200807

sábado, 13 de junho de 2009

GEOMETRIA


Daria,
Por teus planos de cor e de agonia,
Minha suspensa,abstracta geometria,
Que me canta nas veias noite e dia.
Em troca,
Nada mais do que o deserto.
Mas deserto de luz ao longe e ao perto,
Entre sulcos de neve e céu aberto,
Entre o meu desacerto e o meu acerto...
En troca,as formas ágeis,diluídas,
Entre a memória e a história de outras vidas,
Entre a saudade e a dor adormecidas,
A correr sobre faces esbatidas...
Em troca,pouco mais do que o regresso
Às salas onde em espectro me conheço,
Aos campos e às igrejas do começo,
Às naves voadoras do silêncio.
Em troca
Do absurdo onde me quis,
Incompleta,confusa e infeliz,
E viajante amável de um país
De fantasmas e deuses navegantes.
Em troca
Do infinito que se afunda
E se perde num escuro sem penumbra,
E que ninguém,nem tu,poderás dar-me,
Toca!, campainhas de alarme,
Cristais,de luz e cor
Riscando os ares!
Esse é o Mundo!
- O perdido,impossível,morto Mundo,
Pelo qual te daria
Minha suspensa,abstracta geometria,
Que me golpeia as veias noite e dia.
De Natércia Freire

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Excerto da "Carta a António Pereira,Senhor do Basto,Quando se Partiu para a Corte co`a Casa Toda"



Como eu vi correr pardaus
Por Cabeceiras de Basto,
cresceram cercas e gasto,
vi,por caminhos tão maus,
tal trilha e tamanho rasto.

Logo os meus olhos ergui
à casa antiga e à torre,
e disse comigo assi:
"Se Deus não nos val aqui,
perigoso imigo corre!"

Não me temo de Castela,
donde inda guerra não soa;
mas temo-me de Lisboa,
que,ao cheiro desta canela,
o Reino nos despovoa.

E que algum embique e caia,
(afora vá o mau agouro!)
falar por aquela praia
da grandeza de Cambraia,
Narsinga das torres d'ouro!

Ouves,Viriato,o estrago
que cá vai dos teus costumes?
Os leitos,mesas e os lumes,
todo cheira: eu óleos trago;
vem outros,trazem perfumes.

E ao bom trajo dos pastores,
com que saíste à peleja
dos Romãos tam vencedores,
são mudados os louvores;
não há quem t'haja enveja.

...

De Sá de Miranda
Publicado em "A Morte de Portugal",de Miguel Real(Campo das Letras)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

QUE VERGONHA,RAPAZES!


Que vergonha,rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no "diz que"
e a desnalgar a fêmea ("Vist'?Viii!")
Que miséria,meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.
Desejo recalcado,com certeza...
Mas logo desço à rua,encontro o Roque
("O Roque abre-lhe a porta,nunca toque!")
e desabafo: - Ó Roque,com franqueza:
Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria,Snr. O'Neill! E... as varizes?
De Alexandre O'Neill

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O PESO DA SOMBRA


Atravessara o verão para te ver

dormir,e trazia doutros lugares

um sol de trigo na pupila;

às vezes a luz demora-se

em mãos fatigadas; não sei em qual

de nós explodiu uma súbita

juventude,ou cantava:

era mais fresco o ar.

Quem canta no verão espera ver o mar.


De Eugénio de Andrade
Fotografia retirada de botecoliterario.wordpress.com