terça-feira, 27 de novembro de 2007

OFICINA IRRITADA


Eu quero compôr um soneto duro

Como poeta algum ousara escrever

Eu quero pintar um soneto escuro,

seco,abafado,difícil de ler.


Quero que meu soneto,no futuro,

não desperte em ninguém nenhum prazer.

E que,no seu maligno ar imaturo,

ao mesmo tempo saiba ser,não ser.


Esse meu verbo antipático e impuro

há de pungir,há de fazer sofrer,

tendão de Vénus sob o pedicuro.


Ninguém o lembrará:tiro no muro,

cão mijando no caos,enquanto Araturo,

claro enigma,se deixa surpreender.



De CARLOS DRUMOND DE ANDRADE

Óleo de MESTRE ALMADA

domingo, 25 de novembro de 2007

32 ANOS!


É da terra sangrenta. Terra braço

terra encharcada em raiva e em suor

que o homem pouco a pouco passo a passo

tira a matéria-prima do amor.


Umas vezes o trigo loiro e cheio

outras o carvão negro e faiscante

umas vezes petróleo outras centeio

mas sempre tudo menos que o bastante.


Porque a terra não é de quem a trabalha

porque o trigo não é de quem semeia

e um trabalhador apenas falha

quando faz filhos em mulher alheia.


Quando o estrume das lágrimas chegar

para adubar os vales da revolta

quando um mineiro puder respirar

com as narinas dum cavalo à solta


quando o minério se puder tornar

semente viva de bem-estar e pão

quando o silêncio se puder calar

e um homem livre nunca dizer não.



Quando chegar o dia em que o trabalho

for apenas dar mais ao nosso irmão

quando a fúria da força que há num malho

fizer soltar faíscas de razão.


Quando o tempo do aço for o tempo

da têmpera dos homens caldeados

por pó e chuva por excrementos e vento

mas por sua vontade libertados.


Quando a seiva do homem lhe escorrer

por entre as pernas como sangue novo

e quando a cada filho que fizer

puder chamar em vez de Pedro Povo.


As entranhas da terra hão-de passar

o tempo da humana gestação

e parir como um rio a rebentar

o corpo imenso da Revolução.


De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS - A TERRA

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

NIETZSCHE


A partir de hoje pende-me ao pescoço

De um fio de cabelo o relógio das horas:

A partir de hoje cessa o curso dos astros,

E o sol,e o cantar do galo e as sombras;

E o que o tempo jamais me anunciou

É agora surdo e mudo e cego : --

Toda a Natureza agora se me cala

Ao tique-taque da lei e do relógio.



In CONTRA AS LEIS

terça-feira, 20 de novembro de 2007

SONÂMBULO -- XIV


(Gritem comigo contra este sepulcro de vivos!)


Dói-me a boca de silêncio

e vou gritar!

- nesta noite de lua mole

a dobrar-se nos telhados

inertes de bafio...


Dói-me a boca de silêncio

e vou gritar!


- Atirar para a ferrugem do vento

da noite desmantelada

um desafio de acordar o mundo

nas janelas de súbito acesas

- com milhões de vozes

esvaídas num clamor para além do sufocar das pedras!


Dói-me a boca de silêncio

e vou gritar!

Gritar,ouviram?


Gritar esta alegria de não sentir ainda terra na boca!

Gritar esta Labareda,enfim fora dos olhos!



De JOSÉ GOMES FERREIRA,in POESIA - II

desconheço o autor da imagem que encontrei em rainbowsky,blogs.sapo.pt

sábado, 17 de novembro de 2007

BREVÍSSIMA ANTOLOGIA DA POESIA COM CERTEZA


Morramos todos por isso

mais por isto e por aquilo:

no açougue do toitiço

a poesia morre ao quilo.


Carne gorda carne magra

raramente entremeada

com açorda com vinagre

raras vezes com mostarda

cheira mal diz a comadre

cheira bem fareja o frade

e logo responde o padre

em tom de falso derriço:

Morramos todos por isso

atados como o chouriço!


Só a textilpoesia

nesta meada das letras

muitas vezes desenfia

um colar de contas pretas:

Dona Ernesta vai à missa

toda bordada a missanga;

faz poemas com alpista

tira fonemas da manga

e devotada e artista

diz em tom de lenga-lenga

a oração concretista

da melhor raça podenga:

Deuspeus paipai é quepe

estes poemas fezpez:

-Melo e Caspa faz poemas

como quem tem dores nos pés.


Diz o Alexandre O'Neill

que às vezes lhe falta um til.

Ora ponha-o na cabeça

para ver como se acaba

o que depressa começa

quando a chuvada desaba!

Mas se não fosse o O'Neill

Portugal não tinha Abril.

- Ai meu adeus pequenez

o que será deste mês

se nos não chove de vez?

Bem choveu. Ele que fez?

Tropeçou-nos de ternura

a todos como bem quis.

Em Lisboa amor procura

Alexandre Português

que é gaivota e não o diz.


Já o mesmo não direi

- que me desculpe o Pacheco -

de dona-fiama-irei-

-ao-fundo-do-mar-a-seco.


Descobriu monstros marinhos.

É certo.Mas foi por eles

que errando pelos caminhos

ficou cecília mais reles.


Vila do Conde é maior

que todo o fundo do mar

e o Zé Régio é o melhor

descobridor a cantar.

Se a poesia é uma ostra

em Portalegre cidade

acha a pérola quem mostra

a invenção da verdade.

Na varanda do suor

em tristalegre saudade

José Régio fez um filho

que lhe nasceu por amor

e já de maior idade.


Também Natália é parida

do parto de suas dores

e faz poemas que dançam

toucados de mosto e flores.


Natália ninfa nascida

na ilha de seus amores

quando Camões lhe deu vida

por outros descobridores.


Sei bem que tal não agrada

a Dom Frei Gastão da Cruz

que só não é agostinho

por falta de gás e luz.


Mas um poeta mesquinho

a própria água reduz

quando mija em vez de vinho

desperdícios de alcatruz.

- Pois que mije a toda a hora

e que vá puxando à nora...


Mas há coisas que se puxam

que não podemos saber

coisas que nascem estrebucham

antes de alguém as dizer:

Viva o Zé Gomes Ferreira

quando inventa uma roseira.

Viva o Manuel da Fonseca

quando nos fala da seca

e viva Miguel que outorga

ar livre mesmo que morda.


E tu e tu que me pões

um mago dentro da cama

filho do pai de Camões

Mário de rosas e lama

Cesariny Vasconcelos

nomes que a choldra não grama

porque tu não vais com eles

e ficas em verde rama

tocando no bolso esquerdo

os nomes de quem te chama.


Só é poeta quem perde

o corpo de quem mais ama

-- Isto o dirá em verdade

o grande Eugénio de Andrade.



De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI


Eu pouco sei de ti mas este crime

torna a morte ainda mais insuportável.

Era novembro,devia fazer frio,mas tu

já nem o ar sentias,o próprio sexo

que sempre fora fonte agora apunhalado.

Um poeta,mesmo solar como tu,na terra

é pouca coisa:uma navalha,o rumor

de abril podem matá-lo - amanhece,

os primeiros autocarros já passaram

as fábricas abrem os portões,os jornais

anunciam greves,repressão,dois mortos na

primeira

página,o sangue apodrece ou brilhará

ao sol,se o sol vier,no meio das ervas.

O assassino,esse seguirá dia após dia

a insultar o amargo coração da vida;

no tribunal insinuará que respondera apenas

a uma agressão (moral) com outra agressão,

como se alguém ignorasse,excepto claro

os meritíssimos juízes,que as putas desta espécie

confundem moral com o próprio cu.

O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores

como móbil de um crime que os fascistas,

e não só os de Salô,não se importariam de

assinar.

Seja qual for a razão,e muitas há

que o Capital a Igreja e a Polícia

de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,

Pier Paolo Pasolini está morto,

A farsa,a nojenta farsa,essa continua.



De Eugénio de Andrade(Novembro,75)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

MANHÃ


- Bom dia. Diz-me um guarda.

Eu não ouço...apenas olho

das chaves o grande molho

parindo um riso na farda.


Vómito insuportável de ironia

Bom dia, porquê bom dia?


Olhe,senhor guarda

(no fundo a minha boca rugia)

aqui é noite,ninguém mora,

deite esse bom dia lá fora

porque lá fora é que é dia!


De LUÍS VEIGA LEITÃO,in NOITE DE PEDRA


terça-feira, 13 de novembro de 2007

OLHE AQUI,MR.BUSTER...


Este poema é dedicado a um americano

simpático,extrovertido e podre de rico,

em cuja casa estive poucos dias antes

da minha volta ao Brasil,depois de

cinco anos de Los Angeles,E.U.A.

Mr.Buster não podia compreender como é

que eu,tendo ainda o direito de permanecer

mais um ano na Califórnia,preferia,com

grande prejuízo financeiro,voltar para a

"Latin America",como dizia ele.

Eis aqui a explicação,que Mr.Buster certamente

não receberá,a não ser que esteja morto e esse

negócio de espiritismo funcione.

Olhe aqui,Mr.Buster:está muito certo

Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.

Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue

O Sr. tenha um casaco de friso do Partenon,e no quintal de sua casa em Hollywood

Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insónia.

Está muito certo que em ambas as residências

O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial

Por muitos anos a vir,e vacuum-cleaners com mais chupo

Que um beijo de Marilyn Monroe,e máquinas de lavar

Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto

tanto dinheiro em vão na guerra da Coreia.

Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticas

E suas portas se abram com célula fotoeléctica.Está muito certo

Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filme de mocinho

Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi

Com alto-falantes espalhados por todos os andares inclusive nos banheiros

Está muito certo que a SrªBuster seja citada uma vez por mês por Elsa Maxwell

E tenha dois psiquiatras:um em Nova Iorque,outro em Los Angeles,para as duas estações do ano.

Está muito certo,Mr.Buster - o Sr.ainda acabará governador do seu Estado

E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo,aço e consciências enlatadas.

Mas me diga sinceramente uma coisa,Mr.Buster:

O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?

O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?

O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?


De VINICIUS DE MORAES

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos.

De ALEXANDRE O'NEILL,in ABANDONO VIGIADO

A MEU FALECIDO IRMÃO MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE


Meu sacana de versos!Meu vadio.

Fazes falta ao Rossio.Falta ao Nicola.

Lisboa é uma sargeta.É um vazio.

E é raro o poeta que entre nós faz escola.


Mastigam ruminando o desafio.

São uns merdosos que nos pedem esmola.

Aos vinte anos cheiram a bafio

têm joanetes culturais na tola.


Que diria Camões nosso padrinho

ou o Primo Fernando que acarinho

como Pessoa viva à cabeceira?


O que me vale é que não estou sozinho

ainda se encontram alguns pés de linho

crescendo não sei como na estrumeira!


De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS,in OBRA POÉTICA

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

NÃO


Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz.Dormir em paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que me penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas,perfis.
Amar a sombra,a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.

De NATÉRCIA FREIRE,in ANTOLOGIA POÉTICA

terça-feira, 6 de novembro de 2007

CAPITAL


Casas,carros,casas,casos.
Capital
encarcerada.
Colos,calos,cuspo,caspa.
Cautos,castas.Calvas,cabras.
Casos,casos...Carros,casa...
Capital
acumulado.
E capuzes.E capotas.
E que pêsames!Que passos!
Em que pensas?Como passas?
Capitães.E capatazes.
E cartazes.Que patadas!
E que chaves!Cofres,caixas...
Capital
acautelado.
Cascos,coxas,queixos,cornos.
Os capazes.Os capados.
Corpos.Corvos.Copos,copos.
Capital,
oh capital,
capital
decapitada!

De DAVID MOURÃO FERREIRA,in OS QUATRO CANTOS DO TEMPO

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A QUE MORREU ÀS PORTAS DE MADRID


A que morreu às portas de Madrid,
com uma praga na boca
e a espingarda na mão,
teve a sorte que quis,
teve o fim que escolheu.
Nunca,passiva e aterrada,ela rezou.
E antes de flor,foi,como tantas,pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
depois de um saque-antes a deu
a quem lha desejou,
na lama dum reduto,
sem náuseas,mas sem cio,
sob a manta comum,
a pretexto do frio.

Não quis na retaguarda aligeirar
entre champanhe,aos generais senis,
as horas de lazer.
Não quis,activa e boa,tricotar
agasalhos pueris,no sossego dum lar.

Não sonhou minorar,
num heroísmo branco,
de bicho de hospital,
a aflição dos aflitos.

Uma noite,às portas de Madrid,
com uma praga na boca,
e a espingarda na mão,
à hora tal,atacou e morreu.

Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.

De REINALDO FERREIRA,in POEMAS

IMAGINANDO


Nesses dias deitados

Eu pessoalmente gostaria

De dizer a você

O quanto realmente se chora na noite

O quanto se ri de dia da própria desgraça de amar

Não reclamo de nada

Estou até muito bem assim

Imaginando-te sempre doce,sempre boa

Sempre emaranhada

Nos diversos cabelos do meu corpo

Sei muito bem que isso é besteira

Sei muito bem o quanto me abandonas

A cada dia.Mas por isso mesmo

Sei muito bem que nunca mais

É sinónimo de sempre

E imaginar-te comigo é te ter ainda um pouco

Pensar em teu corpo é te amar novamente

Tanto que fico até rouco,como você sabe quando.

Ainda tomo sorvete de coco com você - peço duas

E vou para o carro vazio!O sorveteiro ri!

Não faz mal se o teu derrete no banco

Você não sabia mesmo tomar sorvete sem lambuzar

Vê como já estou imaginando?Mas é assim

Que eu gosto de ficar:imaginando!

Você e tudo o mais que compõe você

Como um samba feliz do Cartola

Eu tenho que continuar pensando em você

A gente só fica mesmo sózinho

Quando não tem ninguém no coração.


De GERSON DESLANDES,in POETAGEM

domingo, 4 de novembro de 2007

EUGÉNIO DE ANDRADE


Eugénio de Andrade é o autor do poema A FIGUEIRA,publicado no poste anterior.

Faz parte do grupo de poemas agrupados com o título OS LUGARES DO LUME,publicados em POESIA.

A FIGUEIRA


Este poema começa no verão,

os ramos da figueira a rasar

a terra convidavam a estender-me

à sua sombra.Nela

me refugiava como num rio.

A mãe ralhava:A sombra

da figueira é maligna,dizia.

Eu não acreditava,bem sabia

como cintilavam maduros e abertos

seus frutos aos dentes matinais.

Ali esperei por essas coisas

reservadas aos sonhos.Uma flauta

longínqua tocava numa écloga

apenas lida.A poesia roçava-

-me o corpo desperto até ao osso,

procurava-me com tal evidência

que eu sofria por não poder dar-lhe

figura:pernas,braços,olhos,boca.

Mas naquele céu verde de agosto

apenas me roçava,e partia.

DESABAFO DO POETA DESARMADO


Procuro desesperadamente as armas do meu tempo.

Precisava de uma enxada mais do que da pena

precisava de cavar até ao fundo

até ao fundo do meu tempo

desenterrar as palavras em ruínas

e perguntar-lhes pelas palavras

pelas armas do meu tempo.

Precisava de uma enxada mais do que da pena.

Precisava de uma espada.


MANUEL ALEGRE,in O CANTO E AS ARMAS