quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

BOULEVARD DELESSERT

Quando vivia em Paris,certa manhã fui despertado por três ou quatro pombos a bicar a vidraça da janela.Fui abrir,e um deles mais afoito entrava para o meu quarto,enquanto eu ia à cozinha procurar qualquer coisa para lhe dar.Enchi uma tijela de arroz,na esperança de o encontrar,embora não tivesse fechado a janela.Lá estava ainda,para minha alegria.Experimentei dar-lhe os grãos na mão,aceitou,e a sua confiança tornou-me também confiante.Quando saí,dei os bons dias à porteira com voz clara e fiz uma festa nos cabelos a um garoto vesgo e feio,que podia ser filho do Sartre,mas que seria neto dela,ou afilhado,já não me lembro.Regressei a casa,depois de comprar milho,pensando no meu visitante matinal.O meu pombo voltou,e durante uma semana vivemos um pequeno idílio feito de trocas simples:eu dava-lhe a mão-cheia de milho,ele deixava-me o excremento no peitoril da janela - não era nada do outro mundo,mas a dona da casa não gostava.Achava aquela relação anormal(talvez preferisse ser ela a receber o milho,matinalmente),e não deixou de mo fazer sentir.Nessa mesma noite deve ter acendido uma vela a Santo António de que era devota,e pedido com fervor a sua intervenção,porque na manhã seguinte o pombo não apareceu.Nem em nenhuma outra das que se lhe seguiram.
Não voltei a Paris,cidade que detesto.


De Eugénio de Andrade(29.12.85)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

NATAL


Tu que dormes na calçada de relento
Numa cama de chuvas com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão,do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão
E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão
Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um Homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher 
Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e combóios de luar
E mentes ao teu filho por não os poder comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão
E tu que não vês na montra a tua fome que eu nem sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão
Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um Homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher


De Ary dos Santos
contributo de Manuela Curado

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

COMEM DE NOITE



Comem de noite pelos caixotes.
Comem de noite.
Grandes famílias,sob capotes
Que são açoites.

             Sob capotes de chuva e pranto,
             Pátrias perdidas.
             Chave na porta,a cama à espera,
             A fuga à terra das suas vidas.

Cumpriram sonhos e não mataram.
Cruzaram sangues e não traíram.
Filhos de humildes embarcações
Árvores soltas de Áfricas vivas.

               Quem corta fitas de liberdade
               A sua gruda em fundos poços.
               Sumam-se contas de ambiguidade:
               Milhares de mortes,milhões de ossos.

Antes que o tempo cobre a verdade
Crescem as teias entre as aranhas.

                E muitos comem pelos caixotes
                Enquanto engordam estranhas espanhas.


De Natércia Freire

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

(FLORIRAM POR ENGANO AS ROSAS BRAVAS)


Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas,meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos,alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos,que um momento
Perscutaram nos meus,como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda,em triunfo,pétalas,de leve
Juncando o chão,na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze - quanta flor - ,do céu,
Sobre nós dois,sobre os nossos cabelos?

De Camilo Pessanha (Coimbra, 1867 - 1926)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

SE...


Se é possível conservar a juventude
Respirando abraçado a um marco de correio;
Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu
Deixando-a em estado grave;
Se ao descer do avião a Duquesa do Quente
Pôs marfim a sorrir;
Se o Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;
Se na América um jovem de cem anos
Veio de longe ver o Presidente
A cavalo na mãe;
Se um bode recebe o próprio peso em aspirina
E a oferece aos hospitais do seu país;
Se o engenheiro sempre não era engenheiro
E a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;
Se reentrante,protuberante,perturbante,
Lola domina ainda os portugueses;
Se o Jorge(o "ponto" do Jorge!)tentou beber naquela noite
O presunto de Chaves por uma palhinha
E o Eduardo não lhe ficou atrás
Ao saír com a lagosta pela trela;
Se "ninguém me ama porque tenho mau hálito
E reviro os olhos como uma parva";
Se Mimi Travessuras já não vem a Lisboa
Cantar com o Alberto...

...Acaso o nosso destino,tac!,vai mudar?


De Alexandre O'Neill