O meu nome é Severino,
como não tenho outro da pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria.
Como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos:é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da Serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos
já finados,Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
De JOÃO CABRAL DE MELO NETO
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
ECCE HOMO

Desbaratamos deuses,procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança,imaginando
Uma causa maior que nos explique.
Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.
Pois Deuses somos nós.Deuses do fogo
Malhando-nos a carne,até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,
Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue,raiva,desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.
De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS
quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
ANTES QUE SEJA TARDE

Amigo
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barcos ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda,amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
Antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
De MANUEL DA FONSECA,in "Poemas Completos"
Ilustração tirada de essenciafeminina1.spaces.live.com
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
IMPROVISO

"Uma rosa depois da neve.
Não sei que fazer
de uma rosa no inverno.
Se não for para arder,
ser rosa no inverno de que serve?"
EUGÉNIO DE ANDRADE
A rosa é sempre a mensagem.
O fogo é sempre a viagem
Dos abraços abrasados na miragem
Do calor de ocultos véus
Poeta!Poeta em astros
De altos lumes
De altos mastros
Lembrança de lumes castos
E de perfumadas bodas
Em teatros de saudosos
Eternos bailes de roda...
Na sonhada perfeição
Dos leitos que a noite embala
Nos seus véus
De ocultos sagrados rios
Rios de amor ocultados
Na paixão dos bem - amados
Água,Luz. Murmúrio a dois,
No olhar adormecido.
Luz de um céu imaginado
No presente,no passado
Água,voz,canção de sóis.
Poema de NATÉRCIA FREIRE
Ilustração de baixaqui.ig.com.br
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
PORT - WINE

O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova Iorque e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bares.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape Town,em Sidney,em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportam em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos do cais,em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no cabo e no rio os fazendeiros ricos
acham no Porto sabor divino,
mas a nós só nos sabe,só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo,liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! - ou morre.
De JOAQUIM NAMORADO,in A POESIA NECESSÁRIA
domingo, 9 de dezembro de 2007
LUME DE INVERNO

O lume. O lume rasteiro. O lume
ainda. Vem de tão longe. Da casa
térrea sobre a eira,
casa onde qualquer coisa pequena
pulsava: um coração,
a água no cântaro,
o trigo a crescer.
Era tão pequeno que nem sabia
como pedir uma laranja,
um pouco de pão.
Menos ainda,um beijo.
Parecia só saber
estender as mãos para aquele sol
rasteiro e para o olhar
que dos sortilégios do lume
o defendia.
De Eugénio de Andrade
Imagem "retirada" de blog.joaogrilo.com
quarta-feira, 5 de dezembro de 2007
CHORO O AMOR

Choro o amor que não lhe dei
Mais a distância nunca vencida.
A vida toda que há numa vida,
Na hora inerte de ser-se rei.
Sabia histórias que não contava,
Contava coisas que mal sabia,
Límpida água,se evaporava.
Naquela aldeia se diluía.
Tenho na pele a sua pele.
Cal dos seus ossos,nestes meus ossos.
Desci com ela.Desci com eles.
Na transfusão dos seus destroços.
Com que palavras,com que poemas,
Hei-de indagar os seus segredos?
A infância em morte se descomanda.
O cemitério dobra a sinais.
Indiferentes fulgem regatos.
Ondeiam olhos no horizonte.
Fala-se a Língua que há nos retratos.
Diz-se que o Céu fica defronte.
É um manicómio de asas abertas
Que o nosso peso manda encerrar.
Pelas estradas hoje desertas
Cantou o mar.
Corre o silêncio por estes vales.
Um nevoeiro.Não chega a neve.
Nada responde.Ninguém me diz,
Se teve amores ou não os teve.
Se quis morrer ou ser feliz.
Ilustração tirada de XAFARICA
Poema de NATÉRCIA FREIRE
sábado, 1 de dezembro de 2007
TEMPO DE NÃO TEMPO DE SIM

"Chegou um tempo em que a vida é uma ordem"
CARLOS DRUMOND DE ANDRADE
Eis que de novo chega um tempo de batalhas.
Chega um tempo de povo. Tempo de viver
ou morrer. Chega um tempo de romper as malhas
que um tempo-aranha tece para nos prender
nas teias de cadeias malhas de muralhas.
Chega um tempo de massa.Tempo revolucionário.
Tempo de negação. Afirmação. Transformação.
Chega um tempo em que o poeta - mesmo o solitário -
já não está só: é só mais um na multidão.
Tempo de ver em cada coisa o seu contrário.
Chega um tempo febril. Fabril. Tempo de sín-
tese. Tempo de guerra. Tempo de mudança.
Chega um tempo de não. Chega um tempo de sim.
Tempo de desespero. Tempo de esperança.
Chega um tempo de início num tempo de fim.
Chega um tempo de agir no sentido do Tempo
tempo de se ganhar o tempo já perdido
tempo de se vencer o tempo - contratempo
para que o Tempo torne a ter sentido.
Chega um tempo de empunhar as armas do Tempo.
De MANUEL ALEGRE,in O CANTO E AS ARMAS
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