O meu nome é Severino,
como não tenho outro da pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria.
Como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos:é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da Serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos
já finados,Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
De JOÃO CABRAL DE MELO NETO
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
ECCE HOMO

Desbaratamos deuses,procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança,imaginando
Uma causa maior que nos explique.
Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.
Pois Deuses somos nós.Deuses do fogo
Malhando-nos a carne,até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,
Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue,raiva,desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.
De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS
quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
ANTES QUE SEJA TARDE

Amigo
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barcos ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda,amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
Antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
De MANUEL DA FONSECA,in "Poemas Completos"
Ilustração tirada de essenciafeminina1.spaces.live.com
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
IMPROVISO

"Uma rosa depois da neve.
Não sei que fazer
de uma rosa no inverno.
Se não for para arder,
ser rosa no inverno de que serve?"
EUGÉNIO DE ANDRADE
A rosa é sempre a mensagem.
O fogo é sempre a viagem
Dos abraços abrasados na miragem
Do calor de ocultos véus
Poeta!Poeta em astros
De altos lumes
De altos mastros
Lembrança de lumes castos
E de perfumadas bodas
Em teatros de saudosos
Eternos bailes de roda...
Na sonhada perfeição
Dos leitos que a noite embala
Nos seus véus
De ocultos sagrados rios
Rios de amor ocultados
Na paixão dos bem - amados
Água,Luz. Murmúrio a dois,
No olhar adormecido.
Luz de um céu imaginado
No presente,no passado
Água,voz,canção de sóis.
Poema de NATÉRCIA FREIRE
Ilustração de baixaqui.ig.com.br
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
PORT - WINE

O Douro é um rio de vinho
que tem a foz em Liverpool e em Londres
e em Nova Iorque e no Rio e em Buenos Aires:
quando chega ao mar vai nos navios,
cria seus lodos em garrafeiras velhas,
desemboca nos clubes e nos bares.
O Douro é um rio de barcos
onde remam os barqueiros suas desgraças,
primeiro se afundam em terra as suas vidas
que no rio se afundam as barcaças.
Nas sobremesas finas as garrafas
assemelham cristais cheios de rubis,
em Cape Town,em Sidney,em Paris,
tem um sabor generoso e fino
o sangue que dos cais exportam em barris.
As margens do Douro são penedos
fecundados de sangue e amarguras
onde cava o meu povo as vinhas
como quem abre as próprias sepulturas:
nos entrepostos do cais,em armazéns,
comerciantes trocam por esterlino
o vinho que é o sangue dos seus corpos,
moeda pobre que são os seus destinos.
Em Londres os lords e em Paris os snobs,
no cabo e no rio os fazendeiros ricos
acham no Porto sabor divino,
mas a nós só nos sabe,só nos sabe,
à tristeza infinita de um destino.
O rio Douro é um rio de sangue,
por onde o sangue do meu povo corre.
Meu povo,liberta-te, liberta-te!,
Liberta-te, meu povo! - ou morre.
De JOAQUIM NAMORADO,in A POESIA NECESSÁRIA
domingo, 9 de dezembro de 2007
LUME DE INVERNO

O lume. O lume rasteiro. O lume
ainda. Vem de tão longe. Da casa
térrea sobre a eira,
casa onde qualquer coisa pequena
pulsava: um coração,
a água no cântaro,
o trigo a crescer.
Era tão pequeno que nem sabia
como pedir uma laranja,
um pouco de pão.
Menos ainda,um beijo.
Parecia só saber
estender as mãos para aquele sol
rasteiro e para o olhar
que dos sortilégios do lume
o defendia.
De Eugénio de Andrade
Imagem "retirada" de blog.joaogrilo.com
quarta-feira, 5 de dezembro de 2007
CHORO O AMOR

Choro o amor que não lhe dei
Mais a distância nunca vencida.
A vida toda que há numa vida,
Na hora inerte de ser-se rei.
Sabia histórias que não contava,
Contava coisas que mal sabia,
Límpida água,se evaporava.
Naquela aldeia se diluía.
Tenho na pele a sua pele.
Cal dos seus ossos,nestes meus ossos.
Desci com ela.Desci com eles.
Na transfusão dos seus destroços.
Com que palavras,com que poemas,
Hei-de indagar os seus segredos?
A infância em morte se descomanda.
O cemitério dobra a sinais.
Indiferentes fulgem regatos.
Ondeiam olhos no horizonte.
Fala-se a Língua que há nos retratos.
Diz-se que o Céu fica defronte.
É um manicómio de asas abertas
Que o nosso peso manda encerrar.
Pelas estradas hoje desertas
Cantou o mar.
Corre o silêncio por estes vales.
Um nevoeiro.Não chega a neve.
Nada responde.Ninguém me diz,
Se teve amores ou não os teve.
Se quis morrer ou ser feliz.
Ilustração tirada de XAFARICA
Poema de NATÉRCIA FREIRE
sábado, 1 de dezembro de 2007
TEMPO DE NÃO TEMPO DE SIM

"Chegou um tempo em que a vida é uma ordem"
CARLOS DRUMOND DE ANDRADE
Eis que de novo chega um tempo de batalhas.
Chega um tempo de povo. Tempo de viver
ou morrer. Chega um tempo de romper as malhas
que um tempo-aranha tece para nos prender
nas teias de cadeias malhas de muralhas.
Chega um tempo de massa.Tempo revolucionário.
Tempo de negação. Afirmação. Transformação.
Chega um tempo em que o poeta - mesmo o solitário -
já não está só: é só mais um na multidão.
Tempo de ver em cada coisa o seu contrário.
Chega um tempo febril. Fabril. Tempo de sín-
tese. Tempo de guerra. Tempo de mudança.
Chega um tempo de não. Chega um tempo de sim.
Tempo de desespero. Tempo de esperança.
Chega um tempo de início num tempo de fim.
Chega um tempo de agir no sentido do Tempo
tempo de se ganhar o tempo já perdido
tempo de se vencer o tempo - contratempo
para que o Tempo torne a ter sentido.
Chega um tempo de empunhar as armas do Tempo.
De MANUEL ALEGRE,in O CANTO E AS ARMAS
quinta-feira, 29 de novembro de 2007
terça-feira, 27 de novembro de 2007
OFICINA IRRITADA

Eu quero compôr um soneto duro
Como poeta algum ousara escrever
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco,abafado,difícil de ler.
Quero que meu soneto,no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que,no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser,não ser.
Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir,há de fazer sofrer,
tendão de Vénus sob o pedicuro.
Ninguém o lembrará:tiro no muro,
cão mijando no caos,enquanto Araturo,
claro enigma,se deixa surpreender.
De CARLOS DRUMOND DE ANDRADE
Óleo de MESTRE ALMADA
domingo, 25 de novembro de 2007
32 ANOS!

É da terra sangrenta. Terra braço
terra encharcada em raiva e em suor
que o homem pouco a pouco passo a passo
tira a matéria-prima do amor.
Umas vezes o trigo loiro e cheio
outras o carvão negro e faiscante
umas vezes petróleo outras centeio
mas sempre tudo menos que o bastante.
Porque a terra não é de quem a trabalha
porque o trigo não é de quem semeia
e um trabalhador apenas falha
quando faz filhos em mulher alheia.
Quando o estrume das lágrimas chegar
para adubar os vales da revolta
quando um mineiro puder respirar
com as narinas dum cavalo à solta
quando o minério se puder tornar
semente viva de bem-estar e pão
quando o silêncio se puder calar
e um homem livre nunca dizer não.
Quando chegar o dia em que o trabalho
for apenas dar mais ao nosso irmão
quando a fúria da força que há num malho
fizer soltar faíscas de razão.
Quando o tempo do aço for o tempo
da têmpera dos homens caldeados
por pó e chuva por excrementos e vento
mas por sua vontade libertados.
Quando a seiva do homem lhe escorrer
por entre as pernas como sangue novo
e quando a cada filho que fizer
puder chamar em vez de Pedro Povo.
As entranhas da terra hão-de passar
o tempo da humana gestação
e parir como um rio a rebentar
o corpo imenso da Revolução.
De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS - A TERRA
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
NIETZSCHE

A partir de hoje pende-me ao pescoço
De um fio de cabelo o relógio das horas:
A partir de hoje cessa o curso dos astros,
E o sol,e o cantar do galo e as sombras;
E o que o tempo jamais me anunciou
É agora surdo e mudo e cego : --
Toda a Natureza agora se me cala
Ao tique-taque da lei e do relógio.
In CONTRA AS LEIS
terça-feira, 20 de novembro de 2007
SONÂMBULO -- XIV

(Gritem comigo contra este sepulcro de vivos!)
Dói-me a boca de silêncio
e vou gritar!
- nesta noite de lua mole
a dobrar-se nos telhados
inertes de bafio...
Dói-me a boca de silêncio
e vou gritar!
- Atirar para a ferrugem do vento
da noite desmantelada
um desafio de acordar o mundo
nas janelas de súbito acesas
- com milhões de vozes
esvaídas num clamor para além do sufocar das pedras!
Dói-me a boca de silêncio
e vou gritar!
Gritar,ouviram?
Gritar esta alegria de não sentir ainda terra na boca!
Gritar esta Labareda,enfim fora dos olhos!
De JOSÉ GOMES FERREIRA,in POESIA - II
desconheço o autor da imagem que encontrei em rainbowsky,blogs.sapo.pt
sábado, 17 de novembro de 2007
BREVÍSSIMA ANTOLOGIA DA POESIA COM CERTEZA

Morramos todos por isso
mais por isto e por aquilo:
no açougue do toitiço
a poesia morre ao quilo.
Carne gorda carne magra
raramente entremeada
com açorda com vinagre
raras vezes com mostarda
cheira mal diz a comadre
cheira bem fareja o frade
e logo responde o padre
em tom de falso derriço:
Morramos todos por isso
atados como o chouriço!
Só a textilpoesia
nesta meada das letras
muitas vezes desenfia
um colar de contas pretas:
Dona Ernesta vai à missa
toda bordada a missanga;
faz poemas com alpista
tira fonemas da manga
e devotada e artista
diz em tom de lenga-lenga
a oração concretista
da melhor raça podenga:
Deuspeus paipai é quepe
estes poemas fezpez:
-Melo e Caspa faz poemas
como quem tem dores nos pés.
Diz o Alexandre O'Neill
que às vezes lhe falta um til.
Ora ponha-o na cabeça
para ver como se acaba
o que depressa começa
quando a chuvada desaba!
Mas se não fosse o O'Neill
Portugal não tinha Abril.
- Ai meu adeus pequenez
o que será deste mês
se nos não chove de vez?
Bem choveu. Ele que fez?
Tropeçou-nos de ternura
a todos como bem quis.
Em Lisboa amor procura
Alexandre Português
que é gaivota e não o diz.
Já o mesmo não direi
- que me desculpe o Pacheco -
de dona-fiama-irei-
-ao-fundo-do-mar-a-seco.
Descobriu monstros marinhos.
É certo.Mas foi por eles
que errando pelos caminhos
ficou cecília mais reles.
Vila do Conde é maior
que todo o fundo do mar
e o Zé Régio é o melhor
descobridor a cantar.
Se a poesia é uma ostra
em Portalegre cidade
acha a pérola quem mostra
a invenção da verdade.
Na varanda do suor
em tristalegre saudade
José Régio fez um filho
que lhe nasceu por amor
e já de maior idade.
Também Natália é parida
do parto de suas dores
e faz poemas que dançam
toucados de mosto e flores.
Natália ninfa nascida
na ilha de seus amores
quando Camões lhe deu vida
por outros descobridores.
Sei bem que tal não agrada
a Dom Frei Gastão da Cruz
que só não é agostinho
por falta de gás e luz.
Mas um poeta mesquinho
a própria água reduz
quando mija em vez de vinho
desperdícios de alcatruz.
- Pois que mije a toda a hora
e que vá puxando à nora...
Mas há coisas que se puxam
que não podemos saber
coisas que nascem estrebucham
antes de alguém as dizer:
Viva o Zé Gomes Ferreira
quando inventa uma roseira.
Viva o Manuel da Fonseca
quando nos fala da seca
e viva Miguel que outorga
ar livre mesmo que morda.
E tu e tu que me pões
um mago dentro da cama
filho do pai de Camões
Mário de rosas e lama
Cesariny Vasconcelos
nomes que a choldra não grama
porque tu não vais com eles
e ficas em verde rama
tocando no bolso esquerdo
os nomes de quem te chama.
Só é poeta quem perde
o corpo de quem mais ama
-- Isto o dirá em verdade
o grande Eugénio de Andrade.
De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS
sexta-feira, 16 de novembro de 2007
REQUIEM PARA PIER PAOLO PASOLINI

Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era novembro,devia fazer frio,mas tu
já nem o ar sentias,o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta,mesmo solar como tu,na terra
é pouca coisa:uma navalha,o rumor
de abril podem matá-lo - amanhece,
os primeiros autocarros já passaram
as fábricas abrem os portões,os jornais
anunciam greves,repressão,dois mortos na
primeira
página,o sangue apodrece ou brilhará
ao sol,se o sol vier,no meio das ervas.
O assassino,esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse,excepto claro
os meritíssimos juízes,que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salô,não se importariam de
assinar.
Seja qual for a razão,e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto,
A farsa,a nojenta farsa,essa continua.
De Eugénio de Andrade(Novembro,75)
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
MANHÃ

- Bom dia. Diz-me um guarda.
Eu não ouço...apenas olho
das chaves o grande molho
parindo um riso na farda.
Vómito insuportável de ironia
Bom dia, porquê bom dia?
Olhe,senhor guarda
(no fundo a minha boca rugia)
aqui é noite,ninguém mora,
deite esse bom dia lá fora
porque lá fora é que é dia!
De LUÍS VEIGA LEITÃO,in NOITE DE PEDRA
terça-feira, 13 de novembro de 2007
OLHE AQUI,MR.BUSTER...

Este poema é dedicado a um americano
simpático,extrovertido e podre de rico,
em cuja casa estive poucos dias antes
da minha volta ao Brasil,depois de
cinco anos de Los Angeles,E.U.A.
Mr.Buster não podia compreender como é
que eu,tendo ainda o direito de permanecer
mais um ano na Califórnia,preferia,com
grande prejuízo financeiro,voltar para a
"Latin America",como dizia ele.
Eis aqui a explicação,que Mr.Buster certamente
não receberá,a não ser que esteja morto e esse
negócio de espiritismo funcione.
Olhe aqui,Mr.Buster:está muito certo
Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.
Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue
O Sr. tenha um casaco de friso do Partenon,e no quintal de sua casa em Hollywood
Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insónia.
Está muito certo que em ambas as residências
O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial
Por muitos anos a vir,e vacuum-cleaners com mais chupo
Que um beijo de Marilyn Monroe,e máquinas de lavar
Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto
tanto dinheiro em vão na guerra da Coreia.
Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticas
E suas portas se abram com célula fotoeléctica.Está muito certo
Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filme de mocinho
Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi
Com alto-falantes espalhados por todos os andares inclusive nos banheiros
Está muito certo que a SrªBuster seja citada uma vez por mês por Elsa Maxwell
E tenha dois psiquiatras:um em Nova Iorque,outro em Los Angeles,para as duas estações do ano.
Está muito certo,Mr.Buster - o Sr.ainda acabará governador do seu Estado
E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo,aço e consciências enlatadas.
Mas me diga sinceramente uma coisa,Mr.Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?
De VINICIUS DE MORAES
sexta-feira, 9 de novembro de 2007
O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
Sim
a ratos.
De ALEXANDRE O'NEILL,in ABANDONO VIGIADO
A MEU FALECIDO IRMÃO MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE

Meu sacana de versos!Meu vadio.
Fazes falta ao Rossio.Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sargeta.É um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.
Mastigam ruminando o desafio.
São uns merdosos que nos pedem esmola.
Aos vinte anos cheiram a bafio
têm joanetes culturais na tola.
Que diria Camões nosso padrinho
ou o Primo Fernando que acarinho
como Pessoa viva à cabeceira?
O que me vale é que não estou sozinho
ainda se encontram alguns pés de linho
crescendo não sei como na estrumeira!
De JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS,in OBRA POÉTICA
quarta-feira, 7 de novembro de 2007
NÃO

Não formar nenhuma ideia
Do que somos ou seremos
Mas entre as vozes que fogem
Precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
Abismos que são infernos.
Dormir em paz.Dormir em paz,
Enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
Que me penetraram no espaço
De eventos primaveris.
E dar a mão aos espectros
Beijá-los lendas,perfis.
Amar a sombra,a penumbra
Correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
Abraçar quem nos ignora
Dormir com quem não nos vê
Mas precisar do calor
De quem nunca nos encontra.
De NATÉRCIA FREIRE,in ANTOLOGIA POÉTICA
terça-feira, 6 de novembro de 2007
CAPITAL

Casas,carros,casas,casos.
Capital
encarcerada.
Colos,calos,cuspo,caspa.
Cautos,castas.Calvas,cabras.
Casos,casos...Carros,casa...
Capital
acumulado.
E capuzes.E capotas.
E que pêsames!Que passos!
Em que pensas?Como passas?
Capitães.E capatazes.
E cartazes.Que patadas!
E que chaves!Cofres,caixas...
Capital
acautelado.
Cascos,coxas,queixos,cornos.
Os capazes.Os capados.
Corpos.Corvos.Copos,copos.
Capital,
oh capital,
capital
decapitada!
De DAVID MOURÃO FERREIRA,in OS QUATRO CANTOS DO TEMPO
segunda-feira, 5 de novembro de 2007
A QUE MORREU ÀS PORTAS DE MADRID

A que morreu às portas de Madrid,
com uma praga na boca
e a espingarda na mão,
teve a sorte que quis,
teve o fim que escolheu.
Nunca,passiva e aterrada,ela rezou.
E antes de flor,foi,como tantas,pomo.
Ninguém a virgindade lhe roubou
depois de um saque-antes a deu
a quem lha desejou,
na lama dum reduto,
sem náuseas,mas sem cio,
sob a manta comum,
a pretexto do frio.
Não quis na retaguarda aligeirar
entre champanhe,aos generais senis,
as horas de lazer.
Não quis,activa e boa,tricotar
agasalhos pueris,no sossego dum lar.
Não sonhou minorar,
num heroísmo branco,
de bicho de hospital,
a aflição dos aflitos.
Uma noite,às portas de Madrid,
com uma praga na boca,
e a espingarda na mão,
à hora tal,atacou e morreu.
Teve a sorte que quis.
Teve o fim que escolheu.
De REINALDO FERREIRA,in POEMAS
IMAGINANDO

Nesses dias deitados
Eu pessoalmente gostaria
De dizer a você
O quanto realmente se chora na noite
O quanto se ri de dia da própria desgraça de amar
Não reclamo de nada
Estou até muito bem assim
Imaginando-te sempre doce,sempre boa
Sempre emaranhada
Nos diversos cabelos do meu corpo
Sei muito bem que isso é besteira
Sei muito bem o quanto me abandonas
A cada dia.Mas por isso mesmo
Sei muito bem que nunca mais
É sinónimo de sempre
E imaginar-te comigo é te ter ainda um pouco
Pensar em teu corpo é te amar novamente
Tanto que fico até rouco,como você sabe quando.
Ainda tomo sorvete de coco com você - peço duas
E vou para o carro vazio!O sorveteiro ri!
Não faz mal se o teu derrete no banco
Você não sabia mesmo tomar sorvete sem lambuzar
Vê como já estou imaginando?Mas é assim
Que eu gosto de ficar:imaginando!
Você e tudo o mais que compõe você
Como um samba feliz do Cartola
Eu tenho que continuar pensando em você
A gente só fica mesmo sózinho
Quando não tem ninguém no coração.
De GERSON DESLANDES,in POETAGEM
domingo, 4 de novembro de 2007
EUGÉNIO DE ANDRADE
A FIGUEIRA

Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidavam a estender-me
à sua sombra.Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava:A sombra
da figueira é maligna,dizia.
Eu não acreditava,bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos.Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida.A poesia roçava-
-me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura:pernas,braços,olhos,boca.
Mas naquele céu verde de agosto
apenas me roçava,e partia.
DESABAFO DO POETA DESARMADO

Procuro desesperadamente as armas do meu tempo.
Precisava de uma enxada mais do que da pena
precisava de cavar até ao fundo
até ao fundo do meu tempo
desenterrar as palavras em ruínas
e perguntar-lhes pelas palavras
pelas armas do meu tempo.
Precisava de uma enxada mais do que da pena.
Precisava de uma espada.
MANUEL ALEGRE,in O CANTO E AS ARMAS
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